domingo, 10 de maio de 2009

AULA INAUGURAL

DUAS FERAS DA MEDICINA PAULISTA foram os Professores Doutores Jairo Ramos e Renato Locchi. Em 1967, quando ingressei na Escola Paulista de Medicina, ambos já tinham se aposentado, mas ainda eram os ilustres dignitários do corpo docente daquela escola de medicina.

Havíamos batalhado arduamente para obter uma classificação entre os duzentos melhores vestibulandos, fazendo jus a uma carteira na Aula Magistral proferida pelo Prof. Jairo, não somente para nós calouros, mas também para os veteranos e todos os professores que lá puderam estar presentes.

Se me perguntarem sobre o que falou, não posso nem alegar de que me esqueci. Não prestei a mínima atenção em suas palavras, porque minha mente estava em intensa ebulição com o prospecto de futuramente ser um médico e, consequentemente, pouco valorizava o que dizia. É claro que hoje, mais maturo, sua oração teria muito sentido e não perderia uma linha de seu discurso.

Os primeiros dias do curso médico correram muito devagar. Visitávamos as dependências da Escola, o Hospital São Paulo e passávamos perto das salas de anatomia, espiando de longe os alunos de 3º ano dissecando alguma peça anatômica.

Foi anunciado que a Aula Inaugural da Disciplina de Anatomia seria proferida pelo Prof. Dr. Renato Locchi, versando sobre “O Respeito ao Cadáver”. Aquela aula foi na própria sala de anatomia, uma sala azulejada, com muitas janelas basculantes, bem arejada e iluminada, e com duas portas largas.

Qual não foi meu susto e mal-estar ao deparar com uma maca lá na frente, com um corpo estendido sobre a mesma, coberto por um fino lençol. Jamais estivera na presença de um defunto em toda minha vida. Não sei da experiência dos outros, mas sentei-me bem perto da porta. Se o professor ameaçasse descobrir o morto, eu sairia voando para o pátio.

Aquele franzino doutor, usando um avental que parecia mais comprido do que ele, entrou na sala, e sua forte presença calou a todos. O que ele falou ali, naquele instante, modificou para sempre o perfil de todos os colegas, conscientizando-os sobre o verdadeiro sentido de Ser Médico. Iniciou sua palestra, contando-nos sobre aquele corpo que se encontrava deitado a alguns palmos dele. Levou-nos a imaginar como aquele ser fora como nós, com alegrias e tristezas, com dezenas de problemas, — e quem não os têm —, os quais deixou para trás ao morrer, além de ter tido família, pai, mãe, esposa, filhos, quem sabe?

Continuou, teorizando sobre a vida daquele homem. Todos nós ficamos encantados com o que disse. Prof. Locchi era, ao mesmo tempo, cativante e firme em suas convicções e propósitos. Aquele falecido deixou seu corpo para o bem da Ciência, para ser utilizado por nós, estudantes de medicina, em benefício da humanidade. Éramos homens de fortuna em poder utilizar aquele cadáver em prol do engrandecimento de nossos conhecimentos científicos.

É desnecessário dizer que o lençol não foi retirado, porém, ao final daquela verdadeira conferência, acho que minha reação teria sido diferente, pois despertou-se em mim a curiosidade de até vislumbrar o rosto daquele homem, para conhecer sua aparência física.

Nos meses que se seguiram, fomos introduzidos paulatinamente ao estudo de peças anatômicas e, no começo do segundo semestre, cada dois alunos recebeu um cadáver para dissecar. Perdêramos totalmente o receio de nos encontrar diante de um morto. As palavras do Prof. Renato Locchi permaneceram frescas em nossas cabeças — como estão até hoje — e foram as diretrizes que moldaram a minha personalidade de médico, bem como de muitos de meus companheiros naqueles seis anos de graduação.

3 comentários:

  1. Ivette Kairalla11:43:00

    Parabéns, Walter! Ví e gostei! Foi muito bom relembrar aqueles momentos nossos (e mais os conhecimentos gerais que você acrescentou)! Que saudades! E que bom ter feito parte daquela turma! Um abraço, Ivette

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  2. Ricardo Miranda11:47:00

    Walter, Você resumiu em tudo a primeira reação que o estudante,calouro de medicina, sente ao se deparar pela primeira vez com o corpo de um ser humano em forma de cadáver!
    Esta transição só pode ser suplantada sem traumas quando,nos dando as mãos,temos alguém com a experiência e maturidade de seu professor.
    Ao ler seu texto "ressentí" a mesma emoção! Foi ontem?
    Parabéns amigo por expressar tão bem o que acontece conosco.

    Ricardo, o mineirinho observador.

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  3. Angélica Alves Souza Pacheco19:25:00

    Sr. Walter, escrevi um e-mail para você, no endereço do Gmail.

    Preciso de uma resposta o mais urgente possivel.


    Obrigada

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