domingo, 11 de janeiro de 2009

O PARTO


NOS QUARTO E QUINTO ANOS DA FACULDADE DE MEDICINA, era costume os estudantes fazerem estágio em serviços públicos de obstetrícia, freqüentados principalmente pela população de baixa renda. Assim, pelo menos, eles obtinham uma vivência prática daquela que é a mais notável das experiências, a procriação e a perpetuação da espécie.

A maioria dessas entidades tinha um médico-obstetra de plantão e os acadêmicos ficavam sob a sua tutela. De acordo com sua boa vontade, capacidade e interesse de ensinar, os estudantes aproveitavam muito estas horas passadas longe da universidade. Após um ano nessa atividade, a considerável bagagem de conhecimentos assimilada os habilitava à tomada de decisões com certa segurança, principalmente sabendo-se que em qualquer circunstância havia a assessoria do colega especialista, graduado e experiente.
Certa ocasião, quando eu cursava o quinto ano, estava de plantão na clínica obstétrica onde já estagiava por mais de um ano. O meio da tarde passara e me encontrava cansado, tanto pelo calor, como pelo número de partos e curetagens feito e ainda tinha de controlar as pacientes em trabalho de parto internadas e atender às pacientes ambulatoriais. Era um trabalho penoso que dividia com mais um colega. Não almoçara e estava ansioso pela chegada do horário de jantar. Ainda faltava todo o plantão noturno por enfrentar.
— Doutor, mais um trabalho de parto — disse a enfermeira, interrompendo o meu devaneio.
— Pode colocá-la na mesa ginecológica, que vou examinar.
Portando o estetoscópio de Pinard, fui até a paciente. Contudo, a pouco menos de um metro de distância, tive de parar. Da mesa vinha um cheiro fétido quase indescritível, azedo, como de uma toalha molhada mofada misturada a roupa que fora muito utilizada e jamais lavada. Distinguia-se, perfeitamente, um odor fecal associado.
Não consegui me aproximar mais. Não tive coragem de encostar o Pinard no abdome protuberante da jovem mãe, de cor pardacenta e que não contava 16 anos de idade.
— Enfermeira! — chamei. — Leve esta senhora direto para o chuveiro!
— Mas Doutor, o bebê pode nascer ali. O senhor nem fez o toque!
— Não fiz e nem vou fazer — retruquei. — Se nascer no chuveiro, tanto melhor. Pelo menos nascerá limpo!
A enfermeira, apesar de saber que eu era apenas um estudante de medicina, achou melhor seguir minhas instruções, ao invés de chamar o médico-obstetra, graças a Deus!
Retirou a paciente da mesa e a levou até o banheiro e lá abriu o chuveiro nela, oferecendo-lhe um sabonete para se lavar.
Cerca de 20 minutos depois, encontrei a moça, agora de camisola, deitada num dos leitos da enfermaria. Avisaram-me de que nada ocorrera de extraordinário no chuveiro e agora estava asseada e, portanto, menos malcheirosa.
Dessa vez pude chegar mais perto para examiná-la e ouvir os batimentos do nenê com o Pinard. Fiz o toque no próprio leito e constatei que ainda teríamos algumas horas de trabalho de parto.
Não pude resistir e indaguei-lhe quando havia tomado banho pela última vez. Havia ponderado como formularia a pergunta sem ofendê-la. Imagina se lhe perguntasse porque fedia tanto...
— Ora, seu dotô — respondeu a futura mãe, na sua inocente ignorância —, num tómu banhu desdi qui fiquei cum nenen.
— A senhora quer dizer que faz nove meses que não se banha?
— É sim sinhô.
— Mas por quê? — quis saber.
— Num sabe, não, seu dotô? As cumadri mi dissi qui fazia mar pra criança.
Diante dessa resposta, calei e fui-me embora, com imperceptível meneio da cabeça. Como podiam existir tamanhas crendices?
De madrugada, fiz o parto. Para uma primigesta e daquela idade, foi um parto dos mais fáceis. Nasceu um forte e belo menino, sem nenhum sinal de sofrimento, sem nenhuma mazela ou defeito.
Será que as comadres tinham razão?

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