domingo, 28 de dezembro de 2008

O POÇO


Meu irmão era peão de uma fazenda e, ocasionalmente, visitava-nos durante seu período de férias. Desta vez, sua presença fora uma dádiva de Deus. Não me esqueço do seu feito, apesar de passados mais de quarenta anos.

Morávamos em um bairro afastado do centro da cidade — hoje um local infestado por arranha-céus. A rua era de terra batida, lugar predileto das crianças para jogarem “taco” ou “bolinha de gude”, além do tradicional futebol, com o gol delimitado apenas por umas pedrinhas. Era uma época feliz, sem qualquer preocupação com o porvir.

O poço teria vinte e três metros de profundidade e sua água era de excelente qualidade. Era potável e, portanto, minha mãe não se preocupava em fervê-la para o consumo. O poço apresentava apenas um problema, a bomba era velha e enguiçava a toda hora. Tinha de ser consertada freqüentemente. Uma parte do mecanismo ficava na superfície, porém a outra era em um nível abaixo, obrigando-se a destampar o poço para se ter acesso a ela. Como criança, prestava pouca atenção às dificuldades dos pais, embora me encontrasse presente diversas vezes quando meu pai consertava o mecanismo de bombear a água.

O poço ficava num canto isolado do quintal, rodeado por um jardim, impecavelmente cuidado por minha mãe. Abundavam as rosas, mas outras flores também alegravam o ambiente. Nossos cães, três fox-terriers, ficavam isolados por uma cerca, com um pequeno portão. Assim, não pisoteavam o precioso jardim, nem defecavam ali.

Neste dia, lá estava meu pai consertando novamente a bomba que engripara na noite anterior. Concentrado no que fazia, não ouviu o telefone tocar, que eu atendi, chamando-o, porque alguém queria lhe falar. Largou tudo, correndo até o aparelho, pois tratava-se de um telefonema importante. Deixou o poço aberto e, pior que isto, o portão da cerca também. Os cachorros, que sempre foram proibidos de passar para aquele pedaço de chão, aproveitaram para fazer uma averiguação. Não conhecendo bem o terreno, um deles, uma fêmea, foi investigar aquele buraco sem tampa e caiu dentro do poço.

Fomos atraídos pelos latidos dos outros dois fox, que rodeavam a entrada do poço. Lá do fundo, ouvíamos os ganidos da Topsy, a mãe dos outros cães, e suas tentativas de se manter com a cabeça fora d’água. A primeira idéia que nos veio, foi a de descer um balde e ver se ela pulava dentro dele. Tínhamos corda suficiente na garagem, porque uma vez tivemos de retirar água do poço de balde, por falta de eletricidade. No entanto, não havia jeito de fazer a cadela entrar no balde.

Precisava ser retirada do poço a qualquer custo, pois senão morreria, e o tempo urgia. Achávamos que sua resistência não seria longa. Foi então que meu mano se ofereceu para descer pelo poço para salvá-la. Não restava outra solução. Explicou que cavara muitos poços na fazenda e tinha a experiência necessária para isto.

Muito a contragosto, meu pai amarrou-lhe a corda na cintura. Até eu duvidava que ele conseguiria segurá-lo, se ele despencasse poço abaixo. E lá se foi. Pude observá-lo descer os primeiros metros, que eram cercados de tijolos, com as costas contra um dos lados e os pés no outro lado arredondado do poço, assim comprimindo o corpo contra a parede para garantir o equilíbrio. Abaixava uma perna, depois a outra e deslizava as costas quase ao mesmo tempo. Era evidente que não era a primeira vez que fazia isto, como havia nos garantido.

Depois de passar o revestimento do poço, o percurso para baixo ficou mais difícil, pois a parede só de terra era úmida e gosmenta, terrivelmente escorregadia. Qualquer passo em falso e sua queda teria sido trágica. Depois de um tempo que pareceu interminável, veio um grito lá do fundo, dizendo que havia atingido a água e estava segurando a cadela, quase nas últimas. Chegara bem a tempo!

Soltou a corda e pediu para mandar o balde para baixo presa na mesma. Rapidamente, meu pai obedeceu e, em poucos minutos, a Topsy estava a salvo, sendo cheirada e lambida pelos outros cães. Minha mãe pegou uma toalha velha e esfregou a cadela, até que a mesma parasse de tremer.

Meu mano começou a dura tarefa de subir novamente. Estava todo enlameado e, devido a isto, sentia muito receio de não conseguir chegar à superfície sem escorregar. Em duas ocasiões, quase perdeu o ponto de apoio e teve de ensaiar uma descida, para depois subir de novo. Olhava para cima e só via o pequeno orifício da clareira que correspondia à abertura da tampa do poço. Com esforço sobre-humano, foi gradativamente vencendo os metros. O orifício foi se tornando maior até que sentiu que encostara nos tijolos. O coração estava na boca, estava ofegante e suava profusamente. Convenceu-se que mais um pouco e atingiria a abertura. Meu pai jogou-lhe a corda, que novamente amarrou na cintura e desta vez foi quase que içado para fora do poço.

Seu estado era deplorável. Apesar disto, todos nós o abraçamos e demos boas risadas, porque não teve um que não ficou sujo de lama. Um bom banho quente esperava por todos. Meu pai, muito reservado quanto a bebidas alcoólicas, abriu uma garrafa de vinho do porto para celebrar, e até eu pude saborear um pequeno cálice.

Nunca mais foi possível tomar a água daquele poço, sem que a mesma fosse fervida. A presença da cadela, e os distúrbios para salvá-la, desequilibraram para sempre aquele lençol potável d’água. A Topsy também nunca mais foi a mesma. Sua saúde tornou-se precária e passou a dormir dentro de casa. Durante o inverno, pegou uma pneumonia. Uma manhã, fui vê-la e ela estava enrolada dentro de sua caixa de papelão na cozinha. Morrera dormindo.

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