Julinho era um excelente jogador. Além de ser um craque no seu esporte predileto, o futebol, gostavam dele porque tinha um ótimo relacionamento com todos. Sua pouca idade — doze — não lhe impedia de participar das peladas com os adultos da vizinhança.
Como faziam seus amigos todos os domingos, logo cedo batiam na porta de sua casa, chamando-o para o jogo. Habitualmente, este se prolongava até quase a hora de almoço. Tinha compromisso assumido com os pais de se apresentar, já de banho tomado, para a reunião familiar, exatamente ao meio-dia e meia.
Aquele domingo parecia que não iria diferir de nenhum outro e lá foi Julinho para seu futebol. Seu pai lia o jornal tranqüilamente, tendo-o buscado no jornaleiro de manhãzinha. Sua mãe varria o quintal e sua irmã ainda dormia.
Costumavam jogar num campinho do outro lado do rio, mas quando lá chegaram, o campo já estava ocupado por dois times conhecidos. Eram todos amigos e, por isso, não gerou discussão. Além do mais, o campinho era propriedade da Prefeitura, portanto, todos tinham igual direito sobre ele.
Ficaram assistindo ao jogo dos outros. Inconformados por não poderem jogar, decidiram bater bola na rua de terra vizinha ao campo. Quem sabe a partida terminaria logo, e então poderiam jogar também. Até pediriam para a outra turma participar, pois faltavam dois elementos para completar duas equipes.
De um lado da rua havia o campinho e, do outro, várias casas, algumas com cercas vivas, outras com grades altas de ferro trabalhado, e uma ou outra nem cerca tinha.
Em dado momento, alguém chutou a bola com muita força. Sabe como é, o entusiasmo, a gritaria e lá foi a bola cair dentro de uma das casas. Julinho, sempre prestativo, tocou a campainha. Ninguém atendeu. Tocou de novo. Nada. Olharam uns para os outros. Era óbvio que os donos da casa estavam ausentes. Com fazer então? Confabularam e decidiu-se que Julinho pularia a cerca para pegar a bola. Ou melhor, escalaria a grade de ferro, pois esta era alta, com lanças no topo.
Dito e feito. Passou para o outro lado sem grandes dificuldades, catou a bola e a jogou para a rua. Agora precisava vencer aquela cerca de novo. Estava cansado. Apesar de ser jovem e ágil, não era todo dia que escalava grades altas e traiçoeiras. Disse traiçoeira? Verdade, pois ao passar por cima das lanças pontiagudas, quando já estava com as pernas do lado de fora da grade, errou a posição de colocar o pé e escorregou. Para não cair, agarrou-se nas lanças e sua mão esquerda foi cravejada pela ponta de uma delas.
Gritou. Pediu socorro. Até o pessoal que estava jogando parou para ver o que estava acontecendo. Julinho se encontrava pendurado na grade, com a mão presa na ponta-de-lança. Os amigos logo entenderam a situação, e dois deles foram amparar suas pernas, para tirar o peso do corpo da mão machucada. Um dos jogadores foi à procura de ajuda. Um dos vizinhos, ouvindo a gritaria, foi ver o que acontecia. Avaliando as circunstâncias, pegou uma serra de metal e serrou aquela ponta-de-lança. Não se aventurou em tentar retirá-la, pois estava fincada como um anzol e só sairia se se ampliasse a ferida.
O mesmo vizinho pôs o menino em seu automóvel e o levou para o Pronto Socorro mais próximo. O médico examinou o rapaz, deu-lhe um analgésico injetável e recomendou que procurasse um hospital, pois necessitaria de cirurgia para retirar aquele “corpo estranho”. A única ambulância disponível tinha saído em uma remoção e tardaria a retornar.
Quando chegaram ao hospital onde eu estava de plantão, já tinham passado por dois outros hospitais que recusaram atendê-lo, alegando que necessitava de um cirurgião de mão. Acostumado que estávamos em atender acidentes do trabalho, das quais uma alta incidência era de traumas de mão, além da política do hospital de não recusar qualquer paciente que necessitasse de atendimento de urgência, Julinho foi internado e levado para o Centro Cirúrgico.
A bem da verdade, ele teve muita sorte. A ponta-de-lança tinha entrado por sob a pele, ferindo muito pouco as estruturas mais nobres da mão. Fomos obrigados a fazer uma extensa incisão por toda a região palmar para liberar o objeto e evitar de lesioná-la ainda mais. Na segunda-feira, depois que me contou como fora o acidente, recebeu alta hospitalar e foi para casa. Acompanhei o menino no nosso Ambulatório. Não apresentou qualquer seqüela e tive a satisfação de lhe dar alta definitiva cerca de quinze dias depois.
No dia seguinte ao infortuno acidente, apareceu um senhor no hospital à minha procura. Apresentou-se como o proprietário da casa onde ocorrera o acidente e veio solicitar que lhe devolvesse a ponta-de-lança para soldá-la de volta na grade. Dei-lhe uma bronca, recomendando que retirasse as outras lanças, ou que pelo menos retirasse as ponteiras tão afiadas. Aleguei que tinha jogado fora. O homem foi embora, muito bravo. Merecia a lição.
Que fim levou a ponta-de-lança? Eu a dera para os funcionários da Manutenção do hospital, pois ficara impressionado com seu peso. Era toda pintada de azul claro. Os rapazes de lá removeram a tinta. Descobrimos que era de bronze. Limaram a ponta, que era muito afiada. Alguns dias depois me devolveram o “corpo estranho”, que guardo como recordação daquele episódio e que uso até hoje como peso de papel.
domingo, 22 de junho de 2008
PONTA-DE-LANÇA
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