quinta-feira, 13 de março de 2008

LEO !

Alfred Velpeau foi um médico-cirurgião que viveu de 1795 a 1867. Foi professor de Clínica Cirúrgica em Paris e teve inúmeros trabalhos científicos publicados.
No meio médico é bastante conhecido o enfaixamento de Velpeau, uma imobilização com faixas de crepe ou de gesso, para lesões do ombro.
Atribui-se a ele, também, a observação de um fenômeno que ficou conhecido como a "Lei de Velpeau", onde fatos estranhos ou difíceis de ocorrerem, acontecem repetidas vezes em curto espaço de tempo.
Pude constatar esta lei em diversas ocasiões no transcorrer do exercício de minha especialidade, mas ficou indelevelmente gravado em minha memória um episódio, que passarei a relatar.
Nunca consegui dormir com tranqüilidade nos plantões que dava com receio de que, se fosse acordado de um sono profundo, pudesse não estar suficientemente alerta para orientar adequadamente os subalternos que fossem me procurar. Daí, sempre dormia com um olho meio-aberto.
Certa vez, fui despertado de madrugada com a informação de que havia chegado na Sala de Emergências um paciente que fora mordido por um leão.
Achando que se tratava de uma brincadeira do colega que me chamou, virei-me para o outro lado e procurei pegar no sono, que foi interrompido pela insistência dele para que visse o paciente.
Levantei-me e fui até lá. Prostrado na maca estava um indivíduo desacordado, com uns 30 anos de idade, com grave lesão de membro superior.
Sucintamente, o antebraço e a mão dele estavam pendurados pelo braço, do qual apenas restara o osso (o úmero); pele, músculos, artérias, veias e nervos não existiam mais. Evidentemente, era um caso para amputação, sem condições mínimas de se salvar aquele membro.
— Que cheiro é este? — indaguei à enfermeira, pois havia um odor desagradável na sala, mistura de toalha molhada com carne putrefacta. Não saberia descrevê-lo de outra forma.
— Doutor, é o cheiro do leão.
— Como assim?
— Pelo que pudemos apurar — complementou meu colega —, este senhor estava limpando a jaula de um leão e ele escapou, mordendo-o.
A enfermeira apontou para o lençol, sobre o qual jazia a vítima.
— Olhe aí os pêlos do leão — disse ela.
De fato, sobre o lençol e na roupa dele havia centenas de pêlos amarelo-esbranquiçados com cerca de um centímetro de comprimento. Fui forçado a aceitar o fato de que o paciente fora abocanhado por um felídeo.
Por falta de condições técnicas, ele foi removido para o Hospital das Clínicas, onde se fez uma amputação a nível de ombro.
Cerca de duas semanas depois, acordaram-me com a notícia de que havia outro paciente no ambulatório mordido por um leão. Desta vez, saí da cama voando e, enquanto me dirigia à Sala de Emergências, lembrei-me de Velpeau.
O diagnóstico se fez assim que adentrei o ambiente, pelo cheiro característico que invadia o recinto.
Havia sido socorrido por uma viatura policial em frente a um circo. Estava tão embriagado que seu hálito, por vezes, sobrepujava o acre animalesco.
O leão arrancara-lhe um bom pedaço do antebraço direito, de maneira irrecuperável e mordiscara o outro membro.
Levei-o ao Centro Cirúrgico, onde fiz uma amputação abaixo do cotovelo, conservando assim aquela articulação. O cirurgião plástico refez o estrago do outro lado.
No dia seguinte, fui visitá-lo. Havia sido internado numa enfermaria de seis leitos. Encontrei-o rodeado pelos outros pacientes do quarto e de funcionários do hospital.
Orgulhosamente, mostrava o coto de amputação enfaixado. Um sorriso iluminava seu rosto, de olhos vermelhos injetados.
— Apostei com um amigo meu — dizia ele —, que seria capaz de acariciar o leão do circo.
Passou a dizer que havia visto o leão fazendo demonstrações circenses e tinha certeza que era domesticado.
Havia enfiado o braço na jaula e o leão o mordeu. Pôs então o outro braço para retirar aquele e o leão largou um para fincar os dentes no outro. Dessa vez, foi mais rápido e conseguiu se desvencilhar.
— E o que aconteceu depois? — quis saber a sua audiência.
Uma expressão idiota apareceu em seu semblante.
— Não me lembro de mais nada até esta manhã.
Virei-lhe as costas e fui-me embora.
Pobre diabo!
Torci para que a Lei de Velpeau não se confirmasse de novo.

Um comentário:

  1. Dr. Walter, gostei muito deste post. E de seu estilo, como escritor. Obrigada!

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