sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

NEVE!

A neve caía incessantemente. Quem estava no grande salão do hotel cinco estrelas dos Alpes italianos achava lindo o cenário que se apresentava através da imensa janela de vidro temperado, com o branco caindo sobre as encorpadas coníferas das encostas da montanha. Era ainda o meio da tarde. Uma lareira acesa aquecia o ambiente e saboreavam-se deliciosos vinhos do norte da Itália. A balburdia de vozes se misturava ao estalar da lareira. Alguns hóspedes estavam sentados em poltronas lendo jornais, revistas ou livros, outros cochilavam. Havia pufes espalhados pelo salão e quem sentava no chão ficava encostado nos mesmos. Era um lugar tranquilo de pessoas endinheiradas.
Alice estava lá, tentando imaginar como seu marido Marcelo iria voltar da vila que ficava ao pé da montanha, localizada a mais de cinquenta quilômetros do hotel. Com essa tempestade de neve, as estradas deveriam estar em péssimas condições. O frio intenso era preocupante pois, quando as estradas congelavam, criava-se uma fina camada de gelo que fazia com que os veículos derrapassem. Mesmo pensando assim, distraía-se pois precisava cuidar dos dois filhos do casal, de quatro e seis anos.

O tempo estava implacável. Nevava cada vez mais. Repentinamente ouviu-se um estrondo e uma grande quantidade de neve despencou do telhado do salão, caindo na frente da grande janela. As crianças correram até lá. O visual que se apresentava era de neve coletada sob a mesma, ao mesmo tempo que uma parte rolava montanha abaixo. Os meninos conversavam animadamente sobre aquela cena inusitada. Alice tentava conter o ânimo deles. Era opinião geral de que agora o hotel ficaria isolado até a tempestade passar.

Alice conversou com Marcelo pelo celular, explicando-lhe o que ocorrera, aconselhando-o a não voltar enquanto não parasse de nevar. As crianças brincavam de pegador com outros pequenos que estavam no salão. Vários hóspedes decidiram jogar cartas, sentados em volta de mesas quadradas cobertas com o tradicional feltro verde. Era uma boa forma de passar o tempo, já que tinham pouco mais a fazer.

No final da tarde, quando começou a escurecer, garçons entraram no salão trazendo cestos de pães e bules de café, chá e leite, além de outras bebidas, como vinho, cerveja, sucos e água. Todos foram se servir numa mesa comprida encostada na parede oposta ao janelão. Os filhos de Alice corriam e gritavam em torno das pessoas que estavam comendo e bebericando perto da mesa. A uma certa hora, os meninos travessos se enfiaram embaixo da mesa e começaram a cutucar as pernas dos hóspedes. Alice foi obrigada a entrar por baixo para agarrá-los, mas eles se esquivavam dela, dando gargalhadas com a brincadeira. Foi quando ouviu-se novo estrondo.

Os hóspedes pouca atenção prestaram ao fato, pois seguramente tratava-se de mais neve se deslocando do telhado. No entanto, repentinamente sentiu-se um sacolejar violento e a parede oposta à grande janela explodiu como se tivesse sido feito de papelão, jogando toneladas de neve, terra e pedras para dentro do salão esmagando tudo e todos à sua frente. Se não bastasse isto, perdendo a sustentação das paredes, o prédio do hotel de dois andares ao lado ruiu, bloqueando completamente a saída do salão. O teto do salão, por receber todo o impacto da avalanche, caiu sobre todos. A avalanche continuou, vindo do topo da montanha, soterrando o hotel de maneira que nada restou. Apenas como resquícios do desastre, havia restos da floresta de coníferas espalhados no caminho da avalanche. Reinava total silêncio.

A escuridão era total. Alice abriu os olhos e não enxergou nada. Perto de onde se encontrava, ouviu o choro de uma criança. Sem entender o que acontecera, tentou levantar e bateu a cabeça numa coisa dura. Passou a mão e sentiu acima dela uma superfície plana, parecendo madeira. Lembrou-se então que se encontrava debaixo da mesa quando tudo ficou escuro. Desmaiara. Subitamente recordou-se porque estava ali, tentando controlar seus filhos. Desatou a chamá-los e, para sua alegria, aquele que estava chorando respondeu e logo a seguir o outro, embora mais distante, também atendeu o seu chamado.

Ainda não sabia o que havia acontecido. Palpou seus bolsos, mal conseguindo mexer os braços e descobriu que estava com o celular. Ligou o aparelho e pela sua tênue luz viu que estava debaixo da mesa, isolada por terra e neve à sua frente. À sua esquerda havia um grande vácuo e à sua direita, a mais ou menos meio metro dela, estava seu filho mais velho, sangrando de um corte na testa. Movendo um pouco mais o celular, enxergou seu outro filho mais além, imobilizado porque as pernas pareciam estar presas em alguns escombros. Alice estava apavorada e incapaz de se mexer de tanto medo. Procurando se acalmar, pediu que o filho chegasse mais perto dela devagar e com cuidado. Veio sorrateiramente e ela retirou um lenço do bolso para limpar seu rostinho.

Finalmente compreendendo o que ocorrera e que tiveram sorte por sobreviver, pediu que o menino fosse até o irmão para tentar soltar suas pernas. Alice se contorcia, finalmente conseguindo ficar de bruços e, usando os cotovelos para se locomover, foi se arrastando até seus filhos. Teve de parar várias vezes, pois seus movimentos faziam entrar neve e terra. Cavando e removendo o entulho com as mãos, puderam libertar o menino. Ela orientou os dois para segui-la até a outra extremidade do buraco onde estavam, porque lá era maior. Pediu que ficassem perto dela, procurando confortá-los, tentando lhes explicar o que provavelmente tinha acontecido e para que ficassem bem quietos para não consumir rapidamente o oxigênio, pois logo, logo, socorro chegaria e seriam resgatados. O filho menor choramingou pelo pai e o maior disse que ele já deveria saber do acidente. Alice não tinha tanta certeza disso, pois quem o avisaria? Ficou estupefata quando o filho sugeriu que ligasse para o pai pelo celular. Nem lhe havia ocorrido isso. Acendendo o celular, viu que havia sinal. Será quê?... Com as mãos trêmulas, digitou o número do Marcelo.

Marcelo encontrava-se numa lanchonete na vila onde aguardava o tempo melhorar. Comia hambúrgueres com um amigo quando o celular tocou. Ainda nevava bastante. Era noite fechada. Com a voz beirando a histeria, Alice lhe contou o que sucedera. Falou rapidamente com seu amigo que saiu da lanchonete para o posto policial do outro lado da rua para alertar I Carabinieri. O chefe de plantão veio correndo, tomou o celular das mãos de Marcelo e falou no aparelho, procurando acalmar a moça em apuros, para depois obter preciosas informações sobre o desastre.

Concluiu-se que houvera uma avalanche e que o hotel estava soterrado. O chefe garantiu ao Marcelo que conheciam perfeitamente a região e, apesar de noite fechada, um grupo de resgate já sairia por terra. Marcelo e seu amigo foram aceitos também, na condição de obedecerem ordens. Ao amanhecer, com o tempo melhor, segundo a previsão meteorológica, helicópteros também se deslocariam para lá.

Em menos de quinze minutos, o posto policial fervilhava de soldados e de voluntários residentes na vizinhança acostumados com este tipo de ação. Seguiram em três viaturas carregadas de ferramentas e Marcelo ia atrás, na caminhonete que havia alugado. Tiveram sorte que, mesmo com a baixa temperatura, não havia pistas congeladas, apenas muita neve. Conseguiram fazer o percurso em pouco tempo.

Quando chegaram na altura da estrada onde existia um desvio que subia para o hotel, não havia mais nada, nem estrada principal, nem o desvio. Tudo estava coberto por neve, terra, pedras e pedaços de paredes e concreto com ferros retorcidos. Subiram a encosta a pé, usando potentes faroletes para iluminar o caminho.

Foi Marcelo quem primeiro identificou uma área que parecia parte do hotel. Todos carregavam varões de ferro, usados especialmente para perfurar a neve para tentar achar estruturas mais firmes embaixo da superfície fofa. Se ali fosse mesmo o hotel, estaria debaixo de uma camada bastante espessa de neve. Nem pensaram em deslocar as árvores caídas, por serem pesadas demais. Marcelo começou a sistematicamente furar a neve com o varão. Em dado momento, sentiu alguma resistência. Chamou os outros que concordaram que havia alguma coisa embaixo. Desataram a cavar e chegaram até o objeto: era uma porta de madeira quebrada. Na porta ainda estava preso um número, mostrando que se tratava da porta de um apartamento do primeiro andar. Conseguiram retirá-la, mas por baixo só havia neve e o varão nada revelou.

Marcelo ligou para Alice pelo celular, mas não conseguiu contato. Será que acabara sua bateria? Tinha toda a esperança de encontrar sua família, mas o tempo urgia. Já sabia que dependiam de um bolsão de ar para se manterem vivos. Ele suava naquele frio, de tanto espetar o varão na neve. Sentia-se extremamente ansioso e cansado. Apesar de estar atento na tarefa à sua frente, seus pensamentos divagavam, relembrando os melhores momentos que tivera com Alice, seu namoro, seu noivado, o casamento e o nascimento de seus filhos. Fora uma excelente vida. Ela e os meninos não mereciam esse destino.

Julgando que a porta do apartamento teria se deslocado para baixo com o impacto da avalanche, subiram mais um pouco sempre cutucando a neve com os varões. Novamente, encontraram uma resistência e cavaram. Chegaram numa estrutura toda retorcida que parecia um telhado e bateram nele com as pás. O amigo do Marcelo pediu silêncio pois achou que ouvira um som que não era eco. Bateu a pá novamente e ouviram com segurança um fraco som distante. Chamaram os outros companheiros e todos começaram a trabalhar na estrutura até abrirem um buraco. Com uma lanterna, iluminaram o local. Era um quarto com todos os móveis quebrados ou tombados e havia quatro pessoas lá dentro. Um estava deitado com a perna torcida num ângulo impossível e sangrava. Os outros pareciam estar bem. Alargaram o buraco e entraram no recinto. Conseguiram retirar os hóspedes. O ferido foi posto numa padiola que um dos soldados trouxera. Explicaram que aquele apartamento se localizava no segundo andar do hotel. O chefe determinou quem levaria o ferido e os outros para os carros lá embaixo, enquanto começou a discutir a situação com os demais.

Se aquele apartamento havia suportado a carga, outros quartos poderiam também estar com pessoas dentro. Não havia como acessar o corredor pela porta, que estava bloqueada. A única solução seria por cima. Embora nunca tivesse prestado muita atenção no desenho do hotel, Marcelo lembrava que o salão nobre era uma projeção que ficava à direita dos apartamentos, quando se olhava para a montanha, portanto o resgate de sua família teria de ser feito por ali.

Neste momento, tocou o celular. Alice estava bastante aflita, ficando mais tranquila ao saber que Marcelo estava por perto. Ele lhe explicou o que estavam fazendo e garantiu que logo os tiraria de lá. Ela agarrou os filhos mais perto, não só para se sentirem mais seguros, mas também porque estava muito frio naquele local. Procuraram ficar bem quietos. Ela sentiu quando os dois adormeceram. Ficava impossível dela dormir. Não sofria de claustrofobia; no entanto, a dificuldade de se locomover fazia com que ela se sentisse desesperada e deu graças a Deus que os meninos dormiam para não testemunhar sua angústia

Tremeu visivelmente quando tocou o celular. Marcelo, com a voz embargada, queria saber como estavam. Já estava amanhecendo e haviam procurado o salão a noite toda. Quando estavam quase perdendo as esperanças, um soldado tropeçou, sofrendo violenta queda. Após socorrê-lo, foram analisar o que causara o tombo e viram que era uma ponta de telhado, à semelhança do outro dos apartamentos. O telhado foi removido aos poucos, revelando uma cena dantesca, com corpos retalhados por todos os lados. Cavando freneticamente, conseguiram chegar até a mesa. Não havia como cavar mais, porque pesados troncos de árvores se encontravam tombados bem à sua frente. Marcelo avisou que iam serrar a mesa com uma motosserra e para ela tomar cuidado.

Já não era sem tempo. Os meninos tinham acordado e apresentavam dificuldade para respirar. Alice também sentia que o ar estava rareando. Com mãos trêmulas, tentou fazer outro contato com Marcelo pelo celular, mas não conseguiu ligá-lo. A bateria se esgotara. Subitamente ouviram a motosserra cortando a mesa perto de onde haviam libertado as pernas do filho menor. Alice achava que realmente não teria forças para chegar até lá. Em questão de minutos, uma parte da mesa foi retirada, mas o tampo começou a se inclinar perigosamente, quase obstruindo a passagem pela qual deveriam alcançar a abertura. Alice pediu para os meninos irem na frente, que ela seguiria atrás. Lentamente, conseguiram chegar e foram içados para fora por fortes mãos e em pouco tempo estavam sendo abraçados pelo pai. O dia já estava claro. Vários sobreviventes estavam sendo transportados aos hospitais mais próximos por helicópteros. Os mortos foram colocados um ao lado dos outros para serem transportados mais tarde. Embaixo da mesa comprida, Alice se arrastava pelos cotovelos até a abertura. Suas forças estavam minguando e sua respiração cada vez mais difícil. Ela via claramente que o deslocamento do tampo da mesa deixara um espaço muito estreito para ela passar. Passou por sua mente de que deveria ter feito um regime e assim mais magra, passaria com maior facilidade. Deu até uma risadinha. Ouviu um barulho de terra se deslocando, teve tempo apenas de estender uma mão para a frente num pedido silencioso de socorro e sentiu um forte golpe na cabeça, forçando seu rosto ao chão. Depois tudo ficou escuro.

Marcelo viu quando o buraco que haviam feito começou a ruir e se encher rapidamente de terra e entulho. Desatou a gritar por ajuda e vários voluntários e soldados correram até ele e todos passaram a cavar freneticamente. Ele berrava e gesticulava pedindo a todos para se apressarem senão sua mulher morreria. Foi necessário retirá-lo de perto e segurá-lo. Com o passar dos minutos, conseguiu se acalmar e ficou de joelhos, abraçado aos dois filhos, olhando aquela cena como se já soubesse do resultado.

Após quase uma hora, conseguiram remover a mesa e cavar por baixo dela, até atingir o corpo inerte de Alice.

2 comentários:

  1. Therezinha13:04:00

    Parabéns pela nova produção. É sempre um enorme prazer ler algo tão bem escrito. Sua precisão gramatical é de dar inveja!!!
    MAS
    Não achei oportuno o momento de apresentação desse conto. Os leitores estavam muito
    desgastados emocionalmente pelos acontecimentos e excesso de noticiário sobre o Haiti, o
    que criou nas pessoas uma certa resistência em aceitar o tema mais uma vez...
    TACC.

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  2. Descobri seu blog por acaso, procurando informações sobre a pedra de coroação dos reis escoceses - e depois ingleses. Sou estudiosa de W. Shakespeare e apaixonada por história inglesa, escocesa e irlandesa. Seu blog foi um grande achado e ainda nem o explorei direito, mas garanto que vou lê-lo inteirinho. Por enquanto só li a história da "pedra" e aquela da perda da sua aliança de casamento. Parabéns.

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