sábado, 21 de novembro de 2009

A VELHINHA

Essa zona rural mais parecia uma fotografia de calendário. A estrada pela qual eu guiava meu carro era de terra e acompanhava o caudaloso rio que serpenteava vagarosamente em direção ao vilarejo onde planejava passar a noite. Pelo espelho retrovisor, observei que minha passagem levantava uma vasta cortina de poeira. Ainda bem que não cruzara com ninguém, senão o coitado sofreria de um mal súbito de tanto comer pó! Mas, apesar da intensa seca, o rio apresentava uma exuberante mata ciliar e, do lado oposto da via, campos plantados com canola enchiam os olhos com suas brilhantes flores amarelas. Aqui e acolá, uma árvore se sobrepunha ao mar dourado, destacando-se pela sua pujante nobreza esverdeada.

Havia reparado que de tempos em tempos os campos de canola eram recortados por estreitas ruelas que desembocavam na estrada por onde eu andava. Entretanto, estavam desertas a esta hora, logo após o meio-dia. Provavelmente os lavradores estavam repousando na sombra de alguma daquelas imponentes árvores no meio da plantação. Qual não foi minha surpresa ao ver uma nuvem de pó se erguendo da canola, como a estragar o belo visual do óleo em flor. Era mais uma estradinha vista a distância, tão estreita que seria impossível receber veículos largos, fossem automóvel, caminhão ou trator. Era tão somente apropriada para pedestres.

Tive de frear abruptamente, mais pela aparição inesperada do que para evitar um acidente, ao surgir uma bicicleta do meio da canola sem me dar a mínima atenção, como se eu e meu carro não existíssemos, e que virou na mesma direção em que eu ia. O que era inusitado e inesperado foi a pessoa que a guiava. De onde eu estava, não conseguia ver seu rosto, mas pelas vestimentas, era óbvio que se tratava de uma mulher. E ela dirigia a bicicleta com habilidade. Logo percebi que era antiga, pois não dispunha de marchas e a roda traseira era recoberta por uma tela para não deixar que seu vestido se enroscasse nos aros. Diminuí a velocidade do meu carro, pois não queria envolvê-la com a poeira da estrada. Vagarosamente emparelhei-me com ela. Tive vontade de parar e oferecer-lhe uma carona, mas sabia de antemão que não teria onde por a bicicleta, se é que ela estava realmente indo para a mesma vila que eu. Seu vestido era branco, todo decorado com enormes flores azuis, fazendo com que o vestido mais parecesse azul do que branco. Usava um chapeuzinho preso sob o queixo com uma fita também azul. Quando, rapidamente, os raios solares iluminaram seu rosto, me surpreendi. A ciclista não era uma moça e sim, uma senhora. Havia rugas nas suas faces, daquelas típicas de quem fica muito tempo exposto ao sol e tem de cerrar os olhos devido a seu brilho. O que impressionou-me foi sua expressão de determinação como se precisasse chegar a todo custo aonde quer que estivesse indo. Mas havia lá outra expressão que pude ver naqueles breves instantes de luz sob o chapéu: uma ternura ímpar, uma aura de bondade que me emocionou. Ela olhou momentaneamente para mim, sorriu e acenou, gesticulando para que eu seguisse adiante, dando a entender que não se importava com a poeira.

Cerca de meia hora depois, eu entrava na pacata vila e, após me informar a respeito de acomodações, dirigi-me ao único hotel existente. O calor estava incrível e fui direto tomar um banho para me refrescar. Desci ao saguão para o restaurante do hotel, que mais servia aos moradores da vila que aos hóspedes. Travei uma conversa com o gerente que me orientou de como chegar ao hospital que viera conhecer, motivo principal de minha vinda a essa região.

As distâncias a serem percorridas eram muito curtas naquela minúscula cidade. Entretanto, descobri que o hospital ficava na periferia da vila. Indo a pé naquele calor do meio da tarde, cheguei todo suado. Carregava meu paletó na mão. Estacionado num local reservado para bicicletas — aparentemente todos as usavam — estava a bicicleta que eu vira na estrada. Além de ser a única que não dispunha de marchas e com a armação tipicamente feminina, apresentava aquela providencial rede traseira. Tinha mais um acessório que não havia constatado na estrada: um cesto metálico à frente do guidão, cuja parte inferior apoiava no para-lama dianteiro. Portanto aquela senhora estava aqui no hospital. Será que se sentira mal andando de bicicleta naquele calor e teve de procurar assistência médica? Ou será que era uma enfermeira ou então fazia parte da administração da instituição?

Deixei minhas conjecturas para lá e me concentrei no objetivo de conhecer o hospital. Mas precisava satisfazer minha curiosidade a respeito daquela senhora. Perguntei para um, perguntei para outro, e fiquei sabendo que a tal senhora se encontrava na ala pediátrica do hospital. Minha conclusão lógica foi de que pelo menos não estava doente. A Pediatria ficava numa área enorme, bem iluminada e com inúmeras janelas, com camas postadas uma ao lado das outras, separadas apenas por pequenos armários que também serviam de criados-mudos. As cabeceiras das camas eram voltadas para as paredes, deixando um espaço grande no centro da enfermaria que servia de local de recreação para as crianças. Ao entrar no recinto, vi que as camas estavam vazias. Seus ocupantes, em pijamas de várias cores e tipos, encontravam-se sentados no chão em círculo, absortos e encantados com as palavras da pessoa que, sentada numa banqueta, segurava um livro e lia para eles. Embora estivesse de costas para mim, logo a reconheci como sendo a mesma que vira na estrada, uma vez que ainda usava o mesmo vestido. Silenciosamente fiquei ouvindo e admirando a atuação dela. A seguir, fui me apresentar a meus colegas que me levaram para visitar outras dependências do hospital. Soube que outrora a casa fora uma antiga residência de ricaços que a doaram para a cidade. A casa fora transformada no único hospital da região. Suas instalações foram modernizadas. Recebia a todos gratuitamente. Dispunha de subvenções governamentais para seu sustento. Fundamentalmente priorizava o atendimento de crianças e se tornara uma instituição famosa por isso. Comentei sobre a grande enfermaria que havia visto e da senhora que lia para os garotos. Os colegas sorriram, dando a entender que a velhinha era uma excêntrica e inofensiva senhora da vila. Quanto ao tamanho da ala de pediatria, achavam que fora o salão de festas do casarão. Agradeci pela gentileza de me terem recebido e fui embora.

Voltei ao hotel satisfeito de ter conhecido o hospital a respeito do qual se falava tanto no meio médico e que tinha motivado minha visita. Eu ainda tinha mais uma missão para cumprir naquele vilarejo: saber de uma prima de minha mãe que deveria estar beirando os 100 anos de idade. No final da tarde, depois de me refrescar de novo, mais uma vez tive de recorrer ao gerente do hotel para me informar como chegar à residência da prima. Na rua indicada havia meia dúzia de casas, todas idênticas. Mas eu sabia que era a última antes da esquina. Abri o portãozinho e cheguei na porta de entrada sob uma pequena varanda. Procurei pela campainha que não achei. Bati palmas, bati na porta, chamei por ela. Em vão. Aparentemente, ou estava de cama, ou não estava em casa. De tanto barulho que fiz, alertei a vizinha que, ao saber quem eu era, disse-me que minha prima era um pouco surda e me mostrou onde estava a campainha, escondida no meio da hera perto da varandinha.

A porta foi aberta por uma senhora de idade avançada. Com certeza era minha prima. Havia um estreito vestíbulo de frente à escadaria que subia para o andar superior. A cozinha ficava nos fundos e à direita havia duas salas: uma de estar e outra de jantar. Entramos na primeira. Conversamos amenidades. Fiquei sabendo que tinha 95 anos de idade. Certamente não aparentava. Quando lhe contei do falecimento de meus pais, ficou triste por uns momentos, comentando que trocara correspondência com minha mãe quando eram adolescentes. Para mim, a prima seria uma fonte importante de informações, uma vez que eu me autodenominava o narrador oficial da história da família. Ao lhe explicar meu intento, sorriu. Eu conhecia aquele sorriso. Provavelmente me lembrava de parentes nossos ou vira fotografias dela quando era mais jovem.

Minha prima era tagarela. Não parava de falar, contando sobre episódios de nossos parentes que eu desconhecia. Quando ela começou a falar de sua família próxima, dando os nomes dos netos e bisnetos, tive de interrompê-la e pedir caneta e papel para escrever tudo. Mais uma vez sorriu e me convidou para a cozinha para tomar um chá. Acrescentou que a mesa de lá seria mais adequada para fazer minhas anotações. Em dado momento, quase deixei cair a xícara no chão. Olhando através da porta dos fundos, vi que havia um barracão onde certamente guardaria velhas quinquilharias e implementos de jardinagem. Aliás, à entrada da casa havia um minúsculo jardim de roseiras, muito bem cuidado. No lusco-fusco do fim de tarde, observei que o jardim dos fundos era igualmente cuidado com capricho. Consegui salvar a xícara de um desastre e não passar vergonha diante de minha prima. Recuperei-me. Pois não é que, encostado no barracão, estava a bicicleta que vira várias vezes no transcorrer do dia. Então era ela a velhinha que eu vira na estrada. Era ela que tinha entretido as crianças no hospital com a leitura.

Contei para a prima de nosso encontro na estrada e de minha ida ao hospital e que a vira lendo para os doentinhos. Mais uma vez, vi aquela ternura e determinação estampadas em seu rosto. Como o vilarejo era muito pequeno, explicou, não dispunha de uma biblioteca. Numa reunião da comunidade local ela havia sugerido que se providenciasse uma biblioteca para todos, em especial para os jovens. Sua sugestão nem foi considerada. Em casa tinha poucos livros, principalmente por falta de espaço, segundo ela. Sabia que a cidade vizinha tinha uma biblioteca e se dispôs a pedir emprestado livros para as crianças de seu vilarejo, porém logo reconheceu seu erro: os pais achavam que ela estava se intrometendo em suas vidas. No entanto, queria fazer alguma coisa de útil e descobriu que os menores internados ficavam à mercê de suas doenças, apenas recebendo visitas esporádicas dos parentes. Conversou com o diretor do hospital e ele concordou que ela lesse para as crianças. Não havia como chegar à cidade vizinha a não ser com transporte coletivo que dava uma volta imensa, ou então cortar caminho pelas plantações de canola. Optou ir de bicicleta. Havia dois anos que fazia isso toda semana, buscando livros e devolvendo-os na semana seguinte. Carregava-os no bagageiro dianteiro de sua bicicleta.

Acredito que o exercício lhe fazia bem. Apesar das rugas e da idade, parecia ter saúde de ferro. Tinha uma lucidez invejável. Fiquei muito satisfeito em encontrá-la. Ela deu-me várias fotografias da família, com minha promessa de que seriam aproveitadas no livro que pretendia escrever. Quando me despedi, jurei manter contato, e foi o que fiz durante os três anos seguintes. Mandava-me cartas prolixas, relatando todos os fatos novos sobre seus parentes próximos. Eu lia com avidez e respondia sempre.

Certo dia teve uma queda dentro de casa sofrendo fratura de colo de fêmur. Os filhos a levaram para uma cidade grande, onde foi operada. Insistiu em voltar para o vilarejo após a cirurgia. Na sua última carta para mim, contou que as crianças, para quem tanto leu no hospital, vinham visitá-la e as mais velhas faziam questão de trazer livros para ler para ela. Pacientemente, em agradecimento, ela ouvia tudo com lágrimas contidas.

Quando completou 100 anos de idade, recebeu uma carta de parabéns assinada de próprio punho pela rainha Elizabeth II da Inglaterra, costume antigo para todos os seus súditos centenários. Soube do evento porque um de seus filhos mandou-me um recorte de jornal com uma entrevista dela. Logo depois, sua mente começou a vagar e foi necessário colocá-la numa casa de repouso para receber cuidados apropriados. Não tinha mais condições de morar sozinha. Uma semana após completar 103 anos de idade, houve um surto de influenza na casa de repouso, o vírus levado por uma visita de outro paciente. Tanto ela como mais três ou quatro idosos ficaram gripados, evoluíram para pneumonia e faleceram.

Essa simpática velhinha mexera comigo. Pude observar e admirar sua altivez e dedicação altruísta às crianças. Ela foi um exemplo de vida e, sem dúvida, o orgulho de todos que se sentiram atingidos pela sua alma caridosa e envolvidos pelo seu calor humano.

3 comentários:

  1. Dr.Walter, ao ler seu e-mail senti orgulho do Sr. Parabéns, não é qualquer médico que tem seu gabarito - espiritual e potencial de instrução. Continue expandindo sua sabedoria.
    Saudações

    ResponderExcluir
  2. Therezinha23:20:00

    De acordo com Cavalcante Proença (crítico literário de Machado de Assis), “o conto exige mais literatura do que o romance”.
    Concordo plenamente. Um conto curto é mais difícil de ser criado do que um romance longo, pois o conto implica em fazer bom uso da linguagem, em ter conhecimento e em empregar adequadamente as palavras. Nele o menos é mais.
    Seus contos primam por uma descrição detalhista e sequencial, o que os tornam possíveis de serem “visualizados”. Suas personagens são humanizadas pela descrição de sentimentos delas o que nos faz gostar delas!
    ─ Adorei a velhinha inglesa e o mendigo de gravata!!!
    Seus contos não são contos de “twist” (i. é, com final inesperado ─ como os de O.Henry, por exemplo), mas deslizam como um riacho murmurante, provocando em nós uma sensação de agradável envolvimento.
    Contos como: Soldado Raso, Ponta de Lança,O Drama de Antonio,O Concertista,O Relógio,Meu Pé de Jabuticaba e Mentiras, são contos leves, singelos, mas de grande força emotiva. Neles você apresenta domínio dos meios de expressão e composição.
    Parabéns,
    TACC.

    ResponderExcluir
  3. Theresinha (II)13:19:00

    Em tempo...
    A VELHINHA - Foi tão bem escrito que consegui "vê-la" pedalando pelas estradas do interior inglês, com seus muros baixos de grandes pedras!!! Agora uma sugestão, ou melhor, um pedido: Escreva mais sobre ela. Quero saber sobre o relacionamento dela com uma ou mais crianças da creche. Seria interessante conhecer essa convivência de gerações tão diferentes.
    TACC.

    ResponderExcluir