domingo, 30 de março de 2008

O RELÓGIO

Que se apresente quem jamais se sentiu atraído por um relógio! Este instrumento de precisão exerce um fascínio impressionante, talvez justamente por ser um objeto que determina as horas, o passar do tempo, que é implacável com o ser humano.
Poderia versar sobre relógios de sol, relógios de água (clepsidras), relógios de areia (ampulhetas), relógios de fogo (de azeite, a vela) e até relógios mecânicos e de pêndulo.
Acredito que todos têm também uma história pessoal para contar a respeito de um relógio, e não fugi à regra. Tem esta, portanto, a finalidade de contar um episódio, que relato agora.
Em 1915, em plena Grande Guerra, meu pai completou 21 anos de idade. Estava na França, lutando contra os alemães. Recebera licença e foi visitar minha avó em Manchester, na Inglaterra. Comemoraram juntos sua maioridade e recebeu da mãe um lindo relógio de bolso. A caixa era de ouro, com o mostrador coberto por uma tampa toda trabalhada, que abria automaticamente quando se pressionava o pino de dar corda. Ele reconheceu que a aquisição daquele presente fora com grande sacrifício.
Durante o resto da guerra, tornou-se seu amigo inseparável. O destino o levou de volta para a América do Sul, onde residira desde os 16 anos, tendo voltado para a Europa apenas para lutar.
Aventureiro como era, embrenhou-se no Chaco Paraguaio e, junto aos índios Lengua, caçava animais, preparava peles e adquiria penas de aves. Ele as levava para vender em Assumpción, a capital do Paraguai, usando um carro de bois no transporte das mercadorias.
Freqüentemente tinha de atravessar rios a nado. Para não molhar o relógio inseparável, colocava-o sobre a cabeça, enrolava a corrente lá também, e por cima colocava seu chapéu, bem apertado. Em uma ocasião fatídica, o relógio caiu dentro do rio. Conseguiu catá-lo, mas o mesmo se encheu de água. Como demorou para que voltasse à civilização, teve a certeza que estava irremediavelmente danificado.
Meu pai casara tarde. Quando eu fiz 10 anos, meu pai já tinha sessenta. Foi mais ou menos nesta época que conheci seu relógio de bolso. Ficava guardado numa pasta de cartolina grossa cor-de-laranja, juntamente com outras lembranças de sua vida.
Certa vez, não sabendo o que dar de presente de aniversário para ele, minha mãe decidiu, às escondidas, pegar o relógio de meu pai e levá-lo a um relojoeiro, para saber se poderia ser consertado. Pôde sim, e a felicidade dele ao receber o presente que minha avó lhe dera no dia de seus 21 anos, funcionando de novo, foi para todos nós uma grande alegria. De pronto, prendeu a corrente em um ilhós de seu colete e colocou o relógio no bolso apropriado. A toda hora, retirava o relógio, apertava o pino para abrir a tampa, e olhava estupefato para o mostrador, com os ponteiros dando a hora certa, não acreditando que funcionava novamente.
Um dia voltou para casa, pálido e com lágrimas nos olhos. Quisemos saber o que tinha acontecido. Ele ergueu a corrente presa ao colete, sem o relógio. Explicou que fora roubado no ônibus. Se não bastasse, seus documentos e dinheiro também foram levados. Ficou muito abatido por ter perdido o único elo que tinha com sua mãe, já falecida havia muitos anos. Os documentos foram jogados em uns jardins, e o proprietário nos telefonou, avisando que os encontrara. Acenderam-se as esperanças de meu pai que foi correndo buscá-los. Mas nada do relógio de ouro.
Desafortunadamente, não houve um final feliz. Lamentamos muito a perda do valioso objeto que ficou guardado por mais de 50 anos como uma lembrança da mãe de meu pai. A idéia de consertá-lo foi genial. Sua felicidade foi gratificante. Seu desalento em tê-lo perdido, uma tristeza inesquecível que me persegue até hoje...

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