quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

O DRAMA DE ANTÓNIO

A padaria tinha aberto suas portas às seis da manhã daquele domingo para atender o público, muito embora os empregados tivessem chegado bem antes para preparar o pão. Ao meio-dia encerrou-se o expediente e, com as portas cerradas, o jovem casal de portugueses, proprietários do estabelecimento, foram ao andar superior onde residiam, pela escadaria interna que lhes servia para esse fim.
Receberam a visita de outro casal para o almoço, que tinha uma filha de quatro anos, da mesma idade de seu filho António.
Dona Maria de Lourdes havia preparado uma deliciosa bacalhoada, regada a vinho branco português. Depois da refeição, foram se sentar nas poltronas da varanda, para saborearem o café e prosear.
O silêncio da rua, a paz e o sossego foram subitamente e ofensivamente interrompidos por um grito de desespero vindo das profundezas da edificação que gelaram os corações de Maria de Lourdes e seu marido Ramalho. Tinham a certeza que partira dos lábios de seu filho.
— Meu Deus, que foi isso?
Os gritos continuavam, agora entrecortados pelo choro de duas crianças e vinham lá da padaria.
Ramalho voou escada abaixo e acendeu a luz, pois a parte de trás da padaria estava na escuridão e ele ouvira o funcionamento de máquinas, que naquela hora deveriam estar todas desligadas.
Nunca mais na vida se apagaria de sua memória a cena que viu. Anos mais tarde, ao reencontrá-lo, contou-me que ainda sonhava com aqueles momentos terríveis e acordava de madrugada, banhado em suor.
António se encontrava de pé em cima da bancada de mármore, gritando, com os pés descalços presos entre os cilindros giratórios da máquina que ficava na bancada e servia para se passar diversas vezes a massa de pão durante o seu preparo.
O motor zunia, mas os cilindros se encontravam travados, devido à espessura dos pés presos neles. Desligou imediatamente o motor e rapidamente soltou o cilindro superior, liberando o garoto, que desfaleceu em seus braços.
A menina chorava num canto e explicou aos pais aflitos que o António brincava próximo aos rolos, quando ela apertou um bonito botão verde. No instante seguinte, o seu amiguinho se pôs a gritar.
Foi esta a história que me foi relatada posteriormente, porque entraram pai, mãe e criança chorando aos berros no Pronto Socorro onde me encontrava de plantão.
O esmagamento dos pés de António era muito sério. As radiografias mostraram fraturas de metatarsais e falanges, mas de pouca importância e gravidade. Porém, as lesões de partes moles eram de abalar o mais experiente ortopedista.
No entanto, o que mais impressionava era a atitude estóica do menino, que ao me ver, pareceu se tranqüilizar e, virando-se para a mãe, falou:
— Mãe, não estou chorando mais, vê?... Então, pare de chorar também!
— Oh, meu filho! — disse ela, apertando-o contra si.
Solicitei o concurso do cirurgião plástico e, juntos, operamos o menor. Lavamos criteriosamente os ferimentos e fizemos enxertos imediatos de pele. Após os curativos, colocamos duas talas gessadas.
O paciente evoluiu com febre e infecção nos primeiros dias e fazíamos curativos diários, até que a aparência dos pés ficou mais saudável. Os dedos mínimos dos pés tiveram de ser amputados, porque ficaram sem circulação sangüínea, porém, foi só.
Quando chegava a hora de fazer os curativos, António parecia oferecer os pés para isso, tal o seu firme propósito de sarar. Observando-o, via seu semblante preocupado, de olhos arregalados e pupilas dilatadas e os lábios esbranquiçados, do esforço que fazia para não emitir um gemido sequer.
Durante este período, ele se manteve calmo, sem nunca chorar ou se lamuriar. Não parecia uma criança de apenas quatro anos. Toda vez que seus pais o visitavam, esboçava um sorriso e abraçava os dois. Injetava ânimo nos seus rostos tensos.
Na enfermaria de crianças, fez amizade entre pacientes e enfermeiras. Era adorado por todos.
Durante quatro semanas ficou restrito ao leito, não podendo andar, mas sua cama estava sempre cheia de brinquedos e rodeada pelos seus coleguinhas de infortúnio.
Ao se aproximar de um mês do acidente, notificamos os pais que íamos tentar fazê-lo caminhar, inicialmente com as talas de gesso e depois sem elas. Nada dissemos ao garoto.
Logo cedo, no dia marcado, os pais se achavam na sala de recepção. Convidei-os para me acompanhar e lá fomos nós até a enfermaria.
Apesar de saber da coragem que António tinha demonstrado desde a sua internação, nunca imaginei que, ao sugerir que andasse, prontamente aceitaria o desafio, sem relutar.
Deu os primeiros passos segurando as minhas mãos e depois as soltou e, desajeitadamente por causa do gesso, com a fácies lívida, foi cambaleando em direção à sua mãe.
— Mamãe!
Todos nós chorávamos de felicidade e batíamos palmas pela sua força de vontade em se recuperar. Seu rosto se iluminou.
Alguns dias depois recebeu alta do hospital e continuou em tratamento ambulatorial, recebendo alta definitiva dois meses depois.
Cerca de três anos mais tarde, tive a oportunidade de revê-lo, quando esteve em consulta por outro problema ortopédico. Não tinha dor nos pés, jogava futebol como qualquer outro menino de sua idade e não se achava traumatizado pelo fato de ter perdido alguns dedos. Enfim, era uma criança normal.
Não posso conter a minha admiração pelo António, que diante da adversidade, com a tenra idade de quatro anos, soube enfrentá-la melhor do que muitos adultos.
P.S. - A história é real; os nomes fictícios. Por ocasião da consulta por outra patologia, apresentei a criança numa reunião médica de ortopedistas interessados em doenças dos pés. Na ocasião, o comentário foi de como é maravilhosa a Mãe Natureza, na recuperação quase que milagrosa de seus pequenos filhos.

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