sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O MATA-BORRÃO




Em ortopedia há uma deformidade congênita do pé na qual o pé se apresenta com a face plantar convexa, dito pé-em-mata-borrão. Da mesma forma, costuma-se recomendar o uso de botas ortopédicas e calçados com solado em mata-borrão para certas patologias ortopédicas. Fico estarrecido quando ao indagar de meus residentes o que é um mata-borrão, não sabem responder. Devido à convexidade do solado, assemelha-se ao suporte inferior das pernas de uma cadeira de balanço, daí o nome inglês para a deformidade e o solado convexo de “rocker-bottom”.

O papel mata-borrão é um papel grosso absorvente de líquidos, em especial da tinta usada para escrever. O porta-papel mata-borrão apresenta uma superfície convexa onde fica preso o papel absorvente. Este objeto lembra o “rocker-bottom” da cadeira de balanço, embora o nome de mata-borrão em inglês seja “ink blotter”.

Mata-borrão é um termo muito utilizado no sul do Brasil, em especial no Rio Grande do Sul. Um dos poemas de Mário Quintana fala sobre o mata-borrão:
“O mata-borrão absorve tudo e no fim da vida acaba confundindo as coisas por que passou...  o mata borrão parece gente!”

Antigamente para se secar a tinta de um manuscrito utilizava-se um pó bem fino, geralmente obtido do endoesqueleto de uma certa espécie de cefalópode, onde se incluem a lula e o polvo, um tipo de estrutura calcárea interna. Embora tenha sido divulgado falsamente o uso de areia, mesmo quando bem fina, de nada adianta, pois acaba deixando a escrita borrada. Após passar o pó pela superfície da escrita, ela seca rapidamente e, assim, pode-se dobrar o manuscrito sem perigo de borrá-lo.

Tem-se notícia que um papel que absorvia líquidos já existia na Idade Média, porém a preferência era dada para o pó do esqueleto do cefalópode, por ser bem mais barato. Há relatos escritos sobre papel mata-borrão nos Estados Unidos desde os fins dos século XVII. Mas foi após os meados do século XIX que se tornou comum o seu uso naquele país, quando Joseph Parker & Filho começaram a fabricar papel mata-borrão. Mais tarde apareceu um papel melhorado, com um lado liso e o outro lado absorvente. Surgiu então, o porta-papel mata-borrão com sua superfície convexa. O uso frequente de penas e canetas-tinteiro por todos fez com que cada escritório ou cada escrivaninha portasse um mata-borrão. Na primeira metade do século XX tornou-se muito popular e servia até como importante peça de propaganda de fabricantes de canetas-tinteiro, bancos, comércios e, principalmente, de companhias de seguro.

Com a invenção da caneta esferográfica nos anos 1950, aos poucos o mata-borrão foi desaparecendo das mesas dos escritórios. Muitas destas peças eram bastante ornamentadas, feitas de madeira, vidro, bronze ou de prata. Em geral, apresentavam uma bolota rosqueada, que firmava uma prancheta plana que prendia o papel mata-borrão à superfície convexa do objeto. São muito procuradas por colecionadores.

Alguns anos atrás estive no consultório de um colega bastante conhecido. Observei que costumava escrever com caneta-tinteiro e secava a tinta com um mata-borrão. O papel, que outrora fora branco, estava preto (ou azul escuro) de tanto usar. Para satisfazer minha curiosidade, indaguei porque não trocava o papel mata-borrão. Sua resposta foi imediata: não encontrou mais para comprar. Em casa, comentei com minha esposa que prontamente se dispôs a procurar o papel. Não havia no mercado. O doutor tinha razão. Porém veio a ideia de se usar um papel de filtro, porém mais grosso que o habitual, que talvez servisse. Foi outra luta para achá-lo, mas, enfim, tivemos êxito. Outro problema que surgiu era de que só poderia ser comprado na fábrica de filtros de papel e em quantidade. No entanto, quando foi explicado, pessoalmente, para o que queríamos, foi-nos concedido uma ou duas folhas do papel de filtro. Bastou telefonar para a secretária do doutor e pedir que tirasse as medidas do mata-borrão, e levar as folhas para uma gráfica para cortar no tamanho certo. Foram cerca de cem papéis mata-borrão que levei para ele. O colega ficou contentíssimo e ainda me disse que tinha papel mata-borrão para o resto da vida. Não o encontro há anos. Sei que ainda está na ativa, apesar de ter se aposentado do serviço público. Tenho a certeza de que até hoje está usando o mata-borrão com os papéis que lhe forneci.


5 comentários:

  1. Gostei de ler a postagem!

    Sandra

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    1. A juventude de hoje que jamais usou caneta tinteiro nem sabe o que é o "mata-borrão".

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  2. Com certeza, mas a caneita tinteiro e o mata-borrão me lembram minha infância, eu cheguei a escrever com caneta tinteiro, mas eu borrava muito. Meu pai tinha uma caneta Sheaffer bordo linda, eu queria ter uma igual. A tinta era nankin. Eu achei a postagem quando procurava como se fala mata-borrão em inglês e tive a sorte de encontrar o seu blog!! Obrigada por compartilhar tantas informações.

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  3. Ótima informação! Mas colega Walter, não acho que precisaria ficar estarrecido por residentes não saberem o que é um instrumento que não é utilizado há algumas décadas. Seus residentes provavelmente não saberiam utilizar nem um telefone de disco.

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  4. Ótima informação! Mas colega Walter, não acho que precisaria ficar estarrecido por residentes não saberem o que é um instrumento que não é utilizado há algumas décadas. Seus residentes provavelmente não saberiam utilizar nem um telefone de disco.

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