sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

ATESTADO MÉDICO



No início de minha carreira — e lá se vão mais de 40 anos — eu dava plantão de clínica médica aos domingos, para não atrapalhar minha residência na especialidade que escolhera. Este plantão era realizado no ambulatório de uma grande empresa, que funcionava 24 horas por dia, de segunda a segunda.
O plantão era puxado, principalmente de dia, conseguindo breve descanso na hora do almoço e do jantar, porém ao retornar, sempre havia pacientes aguardando para serem atendidos. No entanto, prevalecia o maior movimento pela manhã. O intenso atendimento era compensado por noites tranquilas, raramente interrompidas emergências.
Com o passar dos meses, pude constatar que prevalecia uma queixa entre os pacientes: gastroenterocolite aguda, ou seja, diarreia. Eu era obrigado a afastar os funcionários que referiam tal patologia, dando-lhes atestados médicos de um ou dois dias, de acordo com os sintomas relatados.
Ocasionalmente, encontrava uma receita minha caída no pátio da empresa e, na minha inocência de recém-formado, ficava até preocupado, achando que um paciente perdera a receita e iria ficar sem medicação. Jamais um funcionário voltou para pedir nova receita. Certo dia, encontrei uma receita toda amarrotada, jogada perto de uma cesta de lixo, como se alguém tivesse atirado o papel e errado o alvo.
O meu plantão era acompanhado por um enfermeiro que fazia curativos e aplicava medicação prescrita por mim. Comentei sobre meu achado e ele me disse que meu ambulatório era assim movimentado porque os funcionários que folgavam aos sábados vinham no domingo para tentar obter um afastamento, assim ficando em casa o fim de semana inteiro.
Fiquei muito bravo com o abuso por parte daqueles empregados e tinha de tomar uma atitude. Decidi inventar uma desculpa para avaliar a diarreia alegada. Mandava os pacientes ao sanitário e pedia para me chamarem após evacuarem. Em 90% dos casos, o material era sólido! Assim ficou comprovada a deslavada mentira perpetrada pelos falsos pacientes. Alguns, pegos em flagrante delito, tentavam argumentar, dizendo que até aquela madrugada não saíram do banheiro. Agora estavam bem. Eu os congratulava e mandava voltarem ao trabalho. Sabendo que havia sido infrutífera a tentativa de obter um atestado, iam embora emburrados.
Após analisar o sanitário, costumava levar os pacientes de volta ao consultório para orientá-los. Tomava muito cuidado para nunca acusá-los de mentirosos ou pior, de desonestos. Uma vez, um paciente sentado à minha frente, sabendo que não seria afastado, disse-me que estava com uma arma escondida por baixo do jornal e que a apontava para mim. O indivíduo nem conseguiu terminar a sua ameaça, pois rapidamente levantei, ao mesmo tempo em que tombei a mesa que nos separava em cima dele, derrubando-o de sua cadeira, imobilizando-o completamente. Na minha mão estava um cinzeiro de vidro pesadíssimo que ia usar na sua cabeça. Não foi necessário. Estava desarmado. Os últimos momentos foram acompanhados pelo nosso enfermeiro. No dia seguinte comuniquei o ocorrido ao Departamento Pessoal da empresa e como tinha o testemunho do enfermeiro, o funcionário foi demitido por justa causa.
O ambulatório de domingo começou a adquirir fama, porque lá ficava um médico alto, de bigode e bravo e que não dava atestado. Isto refletiu nitidamente no número de atendimentos no plantão, de sorte que, após alguns meses, chegava a atender apenas uma dúzia de gatos pingados. Fiquei sabendo que funcionários que antes frequentavam o ambulatório, estavam procurando um hospital próximo que mantinha convênio com a empresa para obter seus atestados.
Para mim, achava, como acho até hoje, que não poderia compactuar com este tipo de conduta. Todavia, o maior prejudicado fui eu, pois decidiu-se que, com o número tão baixo de pacientes, não valia mais a pena manter o plantão e a empresa decidiu fechar o ambulatório aos domingos e perdi meu emprego...

Um comentário:

  1. Faço de suas, as minhas palavras.. Um abc de Campo Grande

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