sábado, 1 de dezembro de 2007

HUNKY-DORY

Estava sentado na espreguiçadeira, a sor- ver uma deliciosa cerveja gelada, naquele fim de tarde de janeiro. Como de costume, o ventilador de teto da varanda zunia à toda, mandando-nos uma suave brisa, que nos iludia do calor que fazia lá fora.
A varanda é toda telada, pois nesta localidade há muitas moscas e outros insetos voadores que perturbam a paz do ambiente. Não restou outra alternativa que cercá-la para que pudesse ser aproveitada. Por anos serviu apenas de acesso à casa propriamente dita, até que fomos iluminados pela idéia de colocar a tela. Com isso, ganhamos mais um espaço, que agora é o centro de reuniões com os amigos que nos procuram.
Nesta tarde, o vizinho que tem o sítio de frente, pediu-me para lhe contar por que nossa casa se chama "Hunky-Dory". Olhei acima da entrada principal para a placa de ferro pintado e, por longos momentos, fiquei meditando. Essa placa me acompanhou por toda a vida, embora sua presença na família fosse ainda mais remota.
— Meu pai — comecei, e tive de interromper, pois a emoção tomou conta de mim. Após me conter, continuei: — Meu pai, ao casar-se com minha mãe, foi passar a lua-de-mel numa cidade litorânea.
Fiquei observando a reação do meu amigo. Ele sabia, como eu, que tinha de se preparar por uma história meticulosa, pois quando eu estava inspirado, ninguém me segurava e podia ficar horas a fio conversando.
— Foram para uma hospedaria cuja proprietária era uma senhora alemã. Naquele tempo, na década de 30, o relacionamento entre alemães e ingleses (meus pais) era dos mais corteses. Durante sua estadia, ficaram muito amigos. Certo dia, a senhora alemã confidenciou ao meu pai que fazia pouco tempo que adquirira aquela propriedade e quase não a comprara da vergonha que sentira ao deparar-se com uma placa à entrada da casa, cujas palavras não entendia, mas tinha certeza se tratarem de algum tipo de chacota ou então palavras de baixo calão. Como o preço fora altamente tentador e dispunha da quantia certa, herdada do falecido marido, encontrou uma solução temporária, pedindo que se cobrisse a placa com um tapume de madeira e, assim, ficou com a casa.
A essa altura, meus filhos já haviam se sentado ao meu redor, absorvendo a história com avidez. Minha esposa e a do meu amigo nos faziam companhia e pararam de conversar para também ouvir. É claro que minha família conhecia os fatos, mas gostavam que fossem recontados.
— Com grande curiosidade, meu pai pediu permissão para retirar o tapume e ver a placa.
Com uma pausa dramática, apontei para a placa de "Hunky-Dory" e disse: — Era essa placa que agora está aqui.
Todos, sem exceção, olharam para cima da porta principal, à famosa placa: ela parecia reluzir, de tanta atenção que recebia.
— Pois é — disse a seguir —, meu pai entendeu logo o significado e ofereceu retirá-la. A alemã aceitou de bom grado e quando voltaram à sua cidade, meu pai levava a placa embaixo do braço.
Ela ficou em sua posse por mais de trinta anos e jurou que afixaria na primeira casa que construísse. Entretanto, nem sempre os sonhos se tornam realidade e ele nunca pôde ter sua própria residência. Quando viu que não seria possível realizá-lo, passou o sonho para mim e a placa, toda enferrujada, ficou comigo. Pouco mais de dez anos depois, pude edificar a minha casa de campo neste maravilhoso sítio.
Contei estes detalhes à minha audiência.
— Foi com muita infelicidade que meu pai não pôde ver de perto a primeira casa construída por um de seus filhos, que se chamaria "Hunky-Dory". Só viu fotografias dela durante a obra, tendo falecido, aos 85 anos de idade, meses antes de ficarmos aqui pela primeira vez.
Reinava um silêncio respeitador. Todos sabiam o quanto significava para mim a ausência do meu pai, mesmo tantos anos depois e a frustração dele não ter conhecido esta casa.
Meu amigo me perguntou: — Qual é o significado de "Hunky-Dory"? — enrolando um pouco a língua na pronúncia daquelas palavras estrangeiras.
Concluí então a minha história. As palavras gravadas naquela placa de ferro, que foi restaurada antes de ser afixada acima da porta de entrada, traduzidas ao português, queriam dizer que "tudo estava como deveria ser".
Ou seja, em suma, o desejo de meu pai fora cumprido e agora tudo estava em seu devido lugar. Minha cerveja, esquecida ao lado da espreguiçadeira, perdera o gelo. Levantei-me para pegar outra na geladeira. Afastei-me de todos. Uma lágrima escorreu-me rosto abaixo. De costas à platéia, ninguém viu a renovada emoção que sempre sinto, toda vez que me lembro dessa história, tão interligada com a minha própria existência.

8 comentários:

  1. Ah, assim que eu gosto!! Parabéns pela criação do Blog!! Espero que sirva para você colocar seus excelentes textos!!!
    Seu filho, Hugo

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  2. Anônimo18:02:00

    Pai,
    perfeito este texto sobre Hunky-Dory, me traz maravilhosas recordações de suas histórias, e de todas as histórias de nossa família, e isso com certeza me traz também muitas lágrimas, de saudade principalmente.
    Beijo do seu filho,
    Pedro Harris

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  3. Anônimo19:19:00

    Parabéns Waltão, pela iniciativa e pela beleza de página inaugural.
    Linda homenagem a seu pai.
    Fortes abraços.

    Sérgio

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  4. Anônimo19:22:00

    muito bem!
    belo texto, bem montado...
    que seja o início de muitos outros!
    abraços do mello.

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  5. Sempre lí textos maravilhosos de Walter Harris. Este não poderia ser diferente: sensível, bem escrito e marcante.
    Parabéns, amigo Walter, pelo texto e pela criação do blog, que já coloquei dentre meus sítios favoritos.
    Um abraço
    Marcos Salun

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  6. Anônimo20:49:00

    Estimado Walter.
    Obrigado pelo texto e parabens pelo blog. Continue sempre a escrever . È um prazer ouvir e ler seus textos .
    Abraços
    Louzã

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  7. Anônimo00:03:00

    Prezadíssimo Dr. Walter,

    Fico muito contente de sabê-lo encarando estas coisas modernas de blogs, nets e que tais. Recordo-me dos tempos em que, juntos, "ganhávamos" nosso tempo apreciando detalhes de selos de 100, 150 anos atrás, colecionando-os materialmente e sem pressa. Santa Helena, St.Christopher, Nevis & Anguila, Falklands etc. Outros tempos, outros prazeres,outros objetivos. Hoje, tudo digital, tudo rápido, mas as cabeças continuam pensando... Tempo para compartilharmos fisicamente tornou-se difícil e curto. Mas via o encanto de um conto, de um relato, de uma prosa digitada, superamos isto. Grato pelo aviso, parabéns pelo blog e pelos 23 de Outubro de tantos anos.
    Do seu amigo Luiz Cordioli, o maior corredor de todos os tempos! Porque vive correndo atrás das coisas o tempo todo... Sinal dos tempos. Abração a todos.

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  8. Therezinha13:09:00

    HUNKY-DORY é o meu preferido.
    Você teve bastante habilidade em armar o enredo de tal forma que o significado do título só fosse dado ao final do conto. Isso prende a atenção do leitor. Foi ótimo!!!

    TACC.

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