No
início de minha carreira — e lá se vão mais de 40 anos — eu dava plantão de
clínica médica aos domingos, para não atrapalhar minha residência na
especialidade que escolhera. Este plantão era realizado no ambulatório de uma
grande empresa, que funcionava 24 horas por dia, de segunda a segunda.
O plantão era puxado, principalmente de dia,
conseguindo breve descanso na hora do almoço e do jantar, porém ao retornar,
sempre havia pacientes aguardando para serem atendidos. No entanto, prevalecia
o maior movimento pela manhã. O intenso atendimento era compensado por noites
tranquilas, raramente interrompidas emergências.
Com o passar dos meses, pude constatar que
prevalecia uma queixa entre os pacientes: gastroenterocolite aguda, ou seja, diarreia.
Eu era obrigado a afastar os funcionários que referiam tal patologia,
dando-lhes atestados médicos de um ou dois dias, de acordo com os sintomas
relatados.
Ocasionalmente, encontrava uma receita minha caída
no pátio da empresa e, na minha inocência de recém-formado, ficava até
preocupado, achando que um paciente perdera a receita e iria ficar sem
medicação. Jamais um funcionário voltou para pedir nova receita. Certo dia,
encontrei uma receita toda amarrotada, jogada perto de uma cesta de lixo, como
se alguém tivesse atirado o papel e errado o alvo.
O meu plantão era acompanhado por um enfermeiro
que fazia curativos e aplicava medicação prescrita por mim. Comentei sobre meu
achado e ele me disse que meu ambulatório era assim movimentado porque os funcionários
que folgavam aos sábados vinham no domingo para tentar obter um afastamento,
assim ficando em casa o fim de semana inteiro.
Fiquei muito bravo com o abuso por parte daqueles empregados
e tinha de tomar uma atitude. Decidi inventar uma desculpa para avaliar a
diarreia alegada. Mandava os pacientes ao sanitário e pedia para me chamarem
após evacuarem. Em 90% dos casos, o material era sólido! Assim ficou comprovada
a deslavada mentira perpetrada pelos falsos pacientes. Alguns, pegos em
flagrante delito, tentavam argumentar, dizendo que até aquela madrugada não
saíram do banheiro. Agora estavam bem. Eu os congratulava e mandava voltarem ao
trabalho. Sabendo que havia sido infrutífera a tentativa de obter um atestado,
iam embora emburrados.
Após analisar o sanitário, costumava levar os
pacientes de volta ao consultório para orientá-los. Tomava muito cuidado para
nunca acusá-los de mentirosos ou pior, de desonestos. Uma vez, um paciente
sentado à minha frente, sabendo que não seria afastado, disse-me que estava com
uma arma escondida por baixo do jornal e que a apontava para mim. O indivíduo
nem conseguiu terminar a sua ameaça, pois rapidamente levantei, ao mesmo tempo em
que tombei a mesa que nos separava em cima dele, derrubando-o de sua cadeira, imobilizando-o
completamente. Na minha mão estava um cinzeiro de vidro pesadíssimo que ia usar
na sua cabeça. Não foi necessário. Estava desarmado. Os últimos momentos foram
acompanhados pelo nosso enfermeiro. No dia seguinte comuniquei o ocorrido ao Departamento
Pessoal da empresa e como tinha o testemunho do enfermeiro, o funcionário foi
demitido por justa causa.
O ambulatório de domingo começou a adquirir fama,
porque lá ficava um médico alto, de bigode e bravo e que não dava atestado.
Isto refletiu nitidamente no número de atendimentos no plantão, de sorte que, após
alguns meses, chegava a atender apenas uma dúzia de gatos pingados. Fiquei
sabendo que funcionários que antes frequentavam o ambulatório, estavam
procurando um hospital próximo que mantinha convênio com a empresa para obter
seus atestados.
Para mim, achava, como acho até hoje, que não
poderia compactuar com este tipo de conduta. Todavia, o maior prejudicado fui
eu, pois decidiu-se que, com o número tão baixo de pacientes, não valia mais a
pena manter o plantão e a empresa decidiu fechar o ambulatório aos domingos e
perdi meu emprego...
Faço de suas, as minhas palavras.. Um abc de Campo Grande
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