Recentemente, foi-me contada uma
história sobre chinelos voadores. Semelhante à crença de tapetes mágicos, os
chinelos também voavam. Foi narrada com tanta convicção, que parecia até
verdade. O meu amigo me disse que havia vivido esta experiência quando estivera
em Roma a negócios. Estava sozinho, uma vez que sua mulher ficara no Brasil.
Costumava dormir cedo pois, pela manhã, tinha um longo trajeto a percorrer até
chegar a seu destino em Nemi, não muito longe do Castel Gandolfo, residência de
verão do Papa. Gostava de ir lá, porque sempre havia mais italianos que
turistas e também porque o clima era bem mais agradável nas colinas que
circundam Roma, com quase 5ºC a menos em relação à cidade lá embaixo. Para seus
negócios — que não chegou a me dizer quais eram — era o local ideal, pois só
lidava com o povo local, não sofrendo intervenção de estrangeiros, nem de
turistas palpiteiros. Chegava no hotel exausto, logo tirava os sapatos e vestia
os chinelos que comprara próximo do próprio hotel.
Rotineiramente, cansado,
tomava um banho de imersão para relaxar, numa banheira antiga bem grande com
pés de bronze imitando patas de leão. Quando saia dela, sabia que deixaria um
rastro d’água até se enxugar. Por isso colocava os chinelos próximos da porta,
para não molhá-los. Naquela noite deixou os chinelos no lugar costumeiro, porém
não estavam mais lá quando foi calçá-los. Crente que se enganara foi até o
quarto, mas não estavam lá também. Por mais que procurasse, nada. Daí a pouco,
ouviu um suave assobio. Ué! Olhou na direção de onde viera o som e viu os
chinelos no parapeito da janela do quarto.
— Que diabo
estão fazendo ali? Devo estar doido por tê-los colocado lá!
Terminou de se
vestir, pois ainda pretendia descer ao restaurante para jantar e decidiu guardar
os chinelos. Não estavam mais na janela! Olhou para seus pés e viu que estava
usando-os.
— Caramba. Estou
mesmo ficando com amnésia.
Ele ainda
precisava pentear o cabelo, mas ao dar um passo, pareceu ter dado uma passada
mais larga que o normal, fora de seu controle. Mais um passo e quase caiu ao
chão. Mais um e observou que os chinelos pareciam ter vida própria. Assustado, sentou-se
para retirar os chinelos, mas não conseguiu, pois pareciam grudados nos seus
pés. Ouviu então uma risadinha e, depois, novo assobio. Seus cabelos se
arrepiaram, pois aqueles sons pareciam ter vindo de seus pés ou, mais
precisamente, de seus chinelos.
— Que é isso?
Alguma brincadeira? Amanhã vou tirar satisfação com o cara que me vendeu os
chinelos.
No entanto, os
chinelos queriam se mexer. Como não teve êxito em retirá-los, decidiu levantar
de onde sentara e, imediatamente, começou a flutuar. Foi até difícil manter o
equilíbrio, mas enfim conseguiu. Derrotado, tomou a decisão de ver o que iria
acontecer a seguir.
Os chinelos o
levaram até janela, que estava aberta, pois fazia calor e o obrigaram a subir
na janela, na qual se segurou com toda a força possível, enquanto os chinelos
tentavam fazer com que se soltasse. Olhava lá para baixo, pois estava no 10º andar
do hotel e gritava:
— Socorro, me
tirem daqui. Não quero morrer!
Não resistiu por
muito tempo. Aos poucos, pela insistência dos chinelos, seus dedos abandonaram
a janela. Saíram voando, os chinelos levando-o a bel prazer.
— Nããããããão.
Vamos voltar. Esqueci de pentear o cabelo!
Mas de nada
adiantou a desculpa esfarrapada. Identificou vários lugares: o Coliseu, o
Pantheon, a Fontana di Trevi. De repente, ele e os chinelos sobrevoavam Nemi e
o Castel Gandolfo. Reconheceu os dois lagos, o menor, o de Nemi e o Lago
Albano, próximo ao Palácio Papal, que se encontra na cratera de um vulcão
extinto.
Parecia que os
chinelos tinham predileção por água, pois começaram a voar sobre a superfície
do lago, como se fossem esquis aquáticos. Ele até estava se divertindo; sempre
quis saber qual era a sensação de esquiar, digo, voar sobre a água. Mas... tudo
que é bom acaba, e os chinelos pararam de esquiar e ele começou a afundar na
água. Estava afundando, a água já chegava à sua boca e mal conseguia gritar por
socorro.
— Socor... glub,
glub.
Deu um
sobressalto e abriu os olhos. Estava quase se afogando na banheira do quarto do
hotel. Refeito do susto e do pesadelo, levantou-se e se enxugou. Olhou para os
inocentes chinelos que colocara longe da banheira para não molharem. Notou um
certo brilho à distância. Chegando mais perto, viu que os chinelos estavam
ensopados.
— Será que...?
Meu amigo não
quis nem saber. Abriu a porta do apartamento, viu a lixeira do andar, pegou os
chinelos, abriu a portinhola e jogou os chinelos lixeira abaixo. Quando foi
fechar a lixeira, não é que ele ouviu de novo aquela risadinha e um suave
assobio!
Texto muito interessante.Ótima redação. Parabéns
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