segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

BORBOLETAS

Quando criança, um de meus passatempos era caçar borboletas. Naquela inocência infantil, não passava pela cabeça que estava matando insetos inocentes. É, sim, pois esses lindos animais eram anestesiados com doses letais de éter — que ainda se comprava sem nenhuma restrição —, alfinetados pelo corpo, de costas sobre um tabuleiro, com as asas cuidadosamente espraiadas até que ocorresse a rigidez cadavérica e, depois, virados para mostrar o espécime em todo seu esplendor.
Durante vários anos, talvez até a adolescência, mantive uma bela coleção, mas com outros interesses, foi abandonada e teve de ser destruída quando, um dia, ao olhar as borboletas, descobri que estavam mofando e sendo devoradas por larvas de algum outro tipo de inseto. Mas o interesse por borboletas não arrefeceu e, como sou filatelista, tenho uma vasta coleção de selos, cujo tema é borboletas.
As borboletas e mariposas estão entre os insetos mais apreciados. As primeiras são mais populares, talvez porque voam durante o dia e têm cores mais vivas e atraentes, enquanto as mariposas já são mais sombrias e noctívolas. Pertencem ao gênero Lepidoptera, que significa "asas escamosas", porque as asas são recobertas por milhares de escamas sobrepostas. Há quase 200.000 espécies diferentes e apenas 10% são borboletas, o restante mariposas.
Esses insetos vivem e se adaptam a quase todos os climas, variando desde as tundras do Ártico e os altiplanos andinos, até as florestas tropicais e os pântanos costeiros.
Sua principal alimentação na fase adulta é o néctar das flores, porque só se alimentam de substâncias líquidas e, devido a isso, tornam-se importantes polinizadores. As borboletas e mariposas alimentam-se através de um tubo oco parecido a uma língua que enrola e desenrola para alcançar a profundeza das flores.
Algumas das principais diferenças entre borboletas e mariposas, além de suas cores, são o corpo mais delgado das borboletas, as antenas peludas das mariposas e as asas fechadas das mariposas quando estão em repouso. Obviamente, há várias outras características e exceções.
O ciclo de vida desses insetos consiste de quatro fases: ovo, taturana (lagarta ou larva), pupa (casulo) e adulto. A lagarta se desenvolve na capa protetora do ovo. A fase de larva é a mais ativa para a alimentação. Para crescer, a taturana precisa trocar de pele várias vezes. Na fase de pupa, os componentes do corpo sofrem uma transformação, virando a borboleta ou mariposa, que é a fase adulta. São essas que põem os ovos. O ciclo de vida é conhecido por metamorfose completa e varia muito, dependendo da espécie, mas geralmente o ciclo completo dura de 2-12 meses.
É uma lástima que, atualmente, a quantidade e variedade de borboletas e mariposas decresceu muito em nosso meio, pela grande devastação das áreas verdes, substituídas pelos arranha-céus. No entanto, no interior, temos a oportunidade de ainda nos beneficiar com inúmeras multicoloridas e diferentes.
Algumas espécies de minha infância e adolescência já estão em extinção, haja vista o monarca, famoso por ser uma borboleta que emigrava em bandos desde o México para cá e era abundante 50 anos atrás. Hoje não a vemos mais por aqui.
Na minha antiga chácara, sempre tínhamos borboletas. Lembro-me bem de um tipo que gostava dos pés de maracujá e era uma verdadeira praga, porque as lagartas devoravam as plantas. Mas a borboleta era linda, cor de laranja no dorso e a parte ventral repleta de manchas prateadas.
Sem dúvida, há taturanas interessantes, também. Há uma espécie que gosta de mamona. É uma lagarta verde com quase 10 cm de comprimento, da espessura de um dedo mínimo. Como crianças, colocávamos duas num mesmo galho e atiçávamos para que fossem uma de encontro a outra. Saía cada briga, para ver quem dava passagem!
Lá na chácara, certo dia, minha esposa ouviu um ruído de mastigação no jardim. Ao investigar, descobriu uma taturana comendo a folha de uma frutífera. Quando foi arrancar a folha com o inseto para me mostrar, quase tombou de susto, pois não é que a lagarta, que era verde, soltou dois chifres alaranjados que estavam escamoteados, em sua defesa.
É isso. Cabe apenas lembrar que nem todos esses insetos são tão inocentes quanto parecem. É fato notório que muitas taturanas, principalmente as peludas, queimam (na verdade, produzem uma reação alérgica), porém há borboletas e mariposas que são venenosas também.

Referências:
— Carter, David – Butterflies and Moths – Dorling Kindersley Ltd., 1992.

— Sandars, Edmund – A Butterfly Book for the Pocket – Oxford University Press, 3rd. impression (reset), 1955.

INSECTA

Ela tossia sem parar. Parecia uma irritação profunda na garganta. Era uma tosse estridente que não lhe preocupava naquele momento.
Passados alguns dias, tendo dormido mal todos eles, e com a tosse incessante, decidiu procurar ajuda. Foi na farmácia e comprou um expectorante à base de iodo. Não melhorou. Tomou leite quente com mel e limão. Não adiantou nada.
Foi então ao Clínico Geral. Este a examinou, deu-lhe uns tapinhas nas costas, usou o estetoscópio e pediu para que dissesse “trinta e três”. Achou que fosse o início de um resfriado e a medicou sintomaticamente. Deu-lhe outro expectorante, também à base de iodo. Saiu do consultório feliz da vida. Depois de mais três dias sem dormir, por causa da tosse, concluiu que de nada valera ir ao médico.
Procurou uma vizinha, que lhe receitou outra medicação caseira, mas que nada resolveu. No dia seguinte estava com calafrios — apesar do calor que fazia — e sentia náuseas. Decidiu procurar o hospital.
Passou pelo Pronto Socorro e foi vista por um residente de 1º ano. Recém-formado e cheio de dúvidas, fez uma história minuciosa que passou para o residente de 2º ano de Clínica Médica. Examinaram juntos a paciente. Afora a febre e a tosse, nada encontraram: pulmões livres, limpos. Pediram as radiografias padrão. Ao receberem o resultado, observaram que nada havia de anormal. E a paciente continuava tossindo.
Os residentes estavam preocupados com a paciente, porque ela demonstrava sinais de estafa física, talvez pela febre somada à tosse contínua e noites sem dormir. Consultaram o assistente, que concordou com a sua internação.
Já internada, com diagnóstico de pneumopatia infecciosa a esclarecer, foram colhidos vários exames de sangue, além de urina. Eventualmente, poderia estar com febre por uma infecção urinária subclínica. Na discussão do caso, optou-se por não começar tratamento antibiótico antes do resultado dos exames. Um único exame veio alterado: os eosinófilos estavam significativamente elevados. Este dado isolado indicava um processo alérgico intenso. Todos se olhavam com um ponto de interrogação nos rostos.
Era rotina solicitar radioscopia para pacientes internados com doenças pulmonares. Esta não foi nenhuma exceção. A paciente foi levada para o serviço de Radiologia Médica. Foi deitada de costas sobre a mesa e a câmara de radioscopia colocada sobre o tórax dela. O médico radiologista acionou o aparelho e na tela paralela à mesa observava-se o coração batendo e o movimento dos pulmões à medida que a paciente respirava. Não parecia haver nada de anormal. A paciente deu uma tossida forte quando o radiologista desligou a radioscopia e, naquele exato momento, por um instante, ele teve a impressão de ter visto alguma coisa de diferente. Não que pudesse jurar que vira algo estranho, mas imprimiu-se na sua mente, não sabia bem o quê.
Rapidamente voltou a ligar a radioscopia e examinou atentamente os pulmões daquela senhora. Nada viu. Pediu que tossisse. Não aconteceu nada. Repentinamente, ela teve de tossir novamente e eis que, numa dobra de pulmão, surgiu uma pequena mancha branca que se movia!
O radiologista não acreditava no que via. Não desgrudou os olhos da minúscula criatura que mais parecia um ácaro, porém era seguramente uma aranha e se movimentava a passos até que rápidos pelo brônquio daquela senhora. Como foi que a aranha apareceu ali e como conseguiu sobreviver? E como retirá-la de lá?
Naquele tempo, a experiência com broncoscopia era pequena, mas era provavelmente a única solução. Foi chamado o Serviço de Endoscopia, que retirou o inseto com êxito do pulmão daquela senhora.
A paciente foi a única que deu uma explicação razoável para o problema. Ela costumava dormir de costas e seu marido sempre se queixou de que roncava e de boca aberta! Provavelmente, foi numa ocasião destas que a aranha entrou em sua boca e seguiu traquéia abaixo...
A entrada de insetos por orifícios naturais não ocorrem com tanta freqüência assim, porque existem bloqueios naturais para isto. Por exemplo, os pêlos do nariz e os tímpanos nos ouvidos.
No entanto, certa vez, atendi uma senhora no Pronto Socorro que estava desesperada. Tinha um zumbido persistente no ouvido. Classificava-o com se um inseto estivesse batendo asas lá dentro. Era, talvez, uma forma curiosa de se descrever um zumbido, mas deixei passar. Na sua história, nada referia de tonturas, hipertensão ou quaisquer sintomas sugestivos de patologias que pudessem justificar o zumbido. Nada constatei de importante no exame físico de rotina.
Decidi examinar o ouvido. O ouvido do outro lado estava perfeito, mas do lado de que se queixava, não se enxergava o tímpano. Parecia apresentar uma rolha de cerúmen. Era, sem dúvida, a causa de seu problema. Com a ponta do otoscópio verifiquei que conseguia mobilizar a cera. Era uma simples questão de removê-la com uma pinça.
Com extremo cuidado, usando uma pinça sem dentes, consegui agarrar a rolha de cera e lentamente a fui retirando. A paciente reclamava que o zumbido tinha piorado. Qual não foi a minha surpresa e da paciente quando retirei de seu ouvido uma pequena mariposa que, tão logo se sentiu libertada, soltou-se da pinça e saiu voando.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

LEO !

Alfred Velpeau was a French surgeon that lived from 1795 to 1867. He was a professor of Surgery in Paris and many scientific papers of his have been published.
The Velpeau immobilization for shoulder lesions is quite well known.
It is also ascribed to him the observation of a phenomenon called 'Velpeau's Law', when strange or rare facts occur repeatedly in a short period of time.
I have had the opportunity of testing this law during my years as a doctor, but one occasion always comes to mind, that I intend to relate below.
I have never slept easily at the hospital, when I am on night shift, with fear of not waking up properly. Having to deal with emergencies and determining medical procedures are attitudes of responsibility and one has to be wide awake not to commit mistakes. So I have always tried to sleep with an eye half-open.
In the wee hours of a certain morning, a young subordinate of mine came to my dormitory to tell me that a man had been admitted to the Emergency Room, bitten by a lion.
I was certain that my colleague was teasing me, so I turned over and tried to sleep again, but I was interrupted by him urging me to go and see the newly arrived patient.
I got up and went over to the Emergency Room. A thirty-year-old man was lying unconscious on the examining table, with a severe gash of the upper arm. Briefly explained, his forearm and hand were hanging by threads from his upper arm, of which there was only the bone (the humerus); skin, muscles, arteries, veins and nerves were all gone. Obviously, he was a candidate for an amputation, for there was no question as to the possibility of saving that limb.
"What is this smell?" I inquired of the nurse, for an unpleasant stench pervaded the room, a mixture of wet towels and rotten meat. I wouldn't know how to describe it any other way.
"Doctor, it's the lion."
"How so?"
"As far as we can tell," said my colleague, "this man was cleaning out the lion's den and the animal escaped and attacked him."
The nurse pointed to the blood-stained sheet upon which the patient was prostrated.
"Look there at the lion's fur." she said.
The sheet and his clothing were covered with hundreds of yellowish-white hairs, each about half an inch long. I was obliged to accept the fact that a feline had had a mouthful of the patient.
He was operated on, the limb removed at the shoulder joint.
About two weeks later, I was awoken during the night to see another patient bitten by a lion. This time, as soon as I received the news, I ran as fast as I could to the Emergency Room, all the while remembering Velpeau and his well known observation.
I was certain of the diagnosis as soon as I entered the room, for the stench was quite the same as in my previous experience.
He had been brought over by a police car from a close-by circus. He was so drunk that his breath at times rivaled the lion's stench.
The lion had helped himself of a large chunk of the patient's forearm, with no hope of recovery for that part of the right limb and had bitten his other arm as well.
I took the patient to the Operating Theater and amputated him just below the elbow. Our plastic surgeon operated on the other side. Skin grafts were sufficient to save the left limb.
The following day I went to visit him. He was in a six-bed ward. I found him surrounded by patients from other beds and by nurses from that floor.
He was proudly showing off the stump with its dressing. A smile had brightened up his face with bloodshot eyes.
"I made a bet with a friend of mine" he was saying "that I would dare put my hand in the lion's cage to caress him."
He had already seen that lion in action at the circus and was quite sure that he was tame.
So he slipped his arm between the bars and the lion went at him. Even though the pain was intense, he put his left arm in the cage to release the other. The animal let go and thrust his teeth into that arm too. This time, the drunkard was faster and was able to set himself free.
"And what happened after that?" his audience wanted to know.
An idiotic expression appeared on his countenance.
"I can't remember anything else until this morning."
Poor devil!
I turned my back on him and went away, hoping never to have to confront myself with Velpeau's Law again...

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

SÃO NICOLAU

O Dia de São Nicolau é celebrado no dia 6 de dezem-
bro, por ser o dia de sua morte, conforme as antigas tradições cristãs. A data é festejada principalmente no Centro e Leste Europeu e em países como a Alemanha, Bélgica e Holanda.
Há controvérsias sobre a existência de São Nicolau, santo-padroeiro de Apulia (na Itália), Sicília, Grécia e Lorraine (na França), além de um número grande de cidades da Alemanha, Áustria, Bélgica, Holanda, Rússia e Suíça.
Tem-se que Nicolau era nativo de Patara, uma vila da Lícia, na Ásia Menor, perto da atual cidade de Kalamaki, na Turquia. Acredita-se que tenha nascido numa família abastada, entre 260 e 280 d.C. Desde criança, fora educado e orientado nos ensinamentos de Cristo, tornando-se um cristão devoto. Ainda jovem, perdeu os pais para a peste e herdou uma imensa fortuna. Obedecendo as palavras de Jesus de “vender o que era seu e de dar o dinheiro aos pobres”, Nicolau usou sua herança para assistir os necessitados, doentes e vítimas de injustiças.
Uma das histórias mais tradicionais a respeito de São Nicolau conta sobre um nobre empobrecido e suas três filhas. Naquele tempo, era costume que o pai oferecesse, pela filha, um dote ao futuro noivo. Sem o dote, as moças dificilmente conseguiriam se casar e terminavam como escravas ou prostituídas. Nicolau ficou sabendo da situação e, um dia, às escondidas, subiu no telhado da casa daquele senhor e jogou um saco de ouro pela chaminé. No dia seguinte, o pai encontrou o ouro e ficou muito feliz, pois então salvaria a filha mais velha daquele destino cruel. Na noite seguinte, Nicolau repetiu sua visita secreta. Embora contente com o que ocorria, o pai estava curioso para saber quem era seu benfeitor e, assim, flagrou-o quando mandava o terceiro saco de ouro pela chaminé. Uma das filhas havia deixado suas meias para secar na lareira e, justamente dentro de uma delas, caiu o ouro. Nicolau pediu que o homem agradecesse a Deus, e não a ele, e que também não contasse a ninguém. Porém, agradecido, não pôde deixar de elogiar Nicolau. Seu prestígio, que já era dos melhores, cresceu ainda mais.
Nos países protestantes, após a supressão da evocação aos santos, surgiu a veneração holandesa de “Sinter Klaus” (uma variação de Saint Nicholas, ou seja, São Nicolau) e que foi levada para a América do Norte pelos colonizadores holandeses. Posteriormente, foi transformada na história de “Santa Claus”, aquele velho risonho e bonachão, de barba branca, vestido de vermelho, que todos conhecem como Papai Noel. A tradição de que ele desce pela chaminé e deixa presentes em meias penduradas na lareira está alicerçada nas histórias contadas sobre São Nicolau.
Nicolau foi, inicialmente, monge de um mosteiro perto de Mira (atual Demre, na Turquia). Conta-se a história de que, quando o Bispo de Mira faleceu, um prelado idoso teve um sonho: que o mesmo deveria chegar cedo, no dia seguinte, à igreja, para receber a primeira pessoa que chegasse, cujo nome deveria ser — Nicolau — e essa seria o próximo bispo. Como de costume, Nicolau foi à igreja para orar. Cumprimentou o velho padre, com o respeito devido. Ao ser perguntado, e dito seu nome, foi-lhe informado que seria o próximo bispo de Mira. O povo da cidade, já conhecedor das atividades benevolentes dele, ficou muito satisfeito com a indicação de Nicolau que, então, aceitou a recomendação.
São Nicolau é considerado o patrono-protetor das crianças, navegantes, agiotas, estudantes, banqueiros, juristas, viajantes, solteiras, noivas, fabricantes de cerveja, fabricantes de perfumes e, por incrível que pareça, dos ladrões! Fato interessante é que o símbolo adotado por banqueiros e agiotas é o de três sacos ou bolas de ouro, devido à história acima relatada.
Há muitas outras histórias sobre seus feitos e milagres através dos tempos. Seu exemplo de generosidade e compaixão com os necessitados, principalmente com as crianças, fez com que se tornasse um modelo de vida e, por isso, é venerado por católicos e ortodoxos, e honrado pelos protestantes.
Sob o domínio do imperador romano Diocleciano, que perseguia os cristãos, sem trégua, o Bispo Nicolau foi exilado e preso. Após sua liberação, Nicolau atendeu o Concílio de Nicéia (Nicaea, atual Iznik, na Turquia), em 325 d.C. Embora não apareça em todas as relações, seu nome está na lista grega mais antiga daquele concílio e em mais cinco listas.
Ele faleceu, em Mira, no ano 343, e foi enterrado em sua igreja-catedral. Na atualidade, seus restos mortais repousam em Bari, uma cidade portuária no sudeste da Itália, para onde foram transportados em 1087, depois que Mira caiu nas mãos de invasores islâmicos. A Turquia também alega estar de posse do ossário de São Nicolau.
Durante a Idade Média, seu túmulo foi um dos grandes centros de peregrinação religiosa, e Nicolau ficou conhecido como o “Santo de Bari”. Até hoje, peregrinos e turistas visitam a grande Basilica di San Nicola, onde o relicário ainda exala uma fragrância, a mirra.
Entre as muitas orações a São Nicolau, destaca-se esta: “Através da intercessão de São Nicolau, mantenha-nos seguros de todos os perigos, para que possamos seguir adiante, sem receio, no caminho da salvação. Amém”.

sábado, 22 de dezembro de 2007

O MENDIGO DE GRAVATA

Fazia minha caminhada matinal pelo canteiro central da avenida, quando me deparei com um mendigo mexendo em sacos de lixo na calçada, do outro lado da rua. O que prendeu minha atenção foi que parecia estar usando terno e gravata. Mesmo assim, foi apenas uma imagem que rapidamente passou pelos meus olhos. Continuei andando.
Quando voltava, encontrei-o novamente. Desta vez, chafurdava uns sacos pretos que estavam colocados no próprio canteiro central. E não me enganara, ele estava mesmo de terno e gravata. O terno marrom era bem surrado, mas, de onde eu estava, não se via um único remendo. Não dava para saber a cor da camisa, porque só se via o colarinho, mas juro que algum dia fora branca. Com o tempo frio se aproximando, justificava-se o pulôver que vestia. A gravata vermelha desbotada se escondia, em parte, sob o colarinho e debaixo do pulôver.
O mendigo não teria 50 anos, porém, maltrapilho assim, aparentava bem mais. Portava duas sacolas a tiracolo e estava absorto escolhendo garrafas, algumas de vidro, outras de plástico e latas de refrigerante e cerveja, que colocava com cuidado nas sacolas. Só se deu por satisfeito quando as duas estavam cheias e transbordando.
Pareceu que minha presença passara despercebida, pois situava-me a uns dez metros de distância. Havia parado para observá-lo. Com tempo de sobra naquela manhã, decidi seguí-lo, pois queria desvendar o mistério desse homem e saber porque um mendigo se trajava daquele jeito.
Tendo terminado de coletar seus objetos, atravessou a avenida e começou a andar na direção oposta àquela de onde eu tinha vindo. Fui acompanhando-o, porém, pelo canteiro central. Só passei para a outra calçada quando o mendigo entrou numa rua que saía da avenida. Quando eu consegui chegar na esquina, vi que ele havia progredido bastante, pois estava quase um quarteirão à minha frente. Dobrou outra esquina. Tive a sorte de vê-lo entrando num terreno cercado. Quando cheguei ao portão, entendi onde me encontrava, pois havia um cartaz anunciando que aquele era um depósito de material para reciclagem. Havia sacos de lixo e caixas de papelão cheios por todos os lados, provavelmente trazidos pelas carrocinhas, das quais havia várias estacionadas. Contudo, nada do mendigo de gravata. Assim que vi alguém circulando pela área, indaguei pelo homem de terno.
— Ah — respondeu —, deve ser Seu Benedito. Ele está lá no escritório.
Apontou para uma estrutura que eu não tinha observado antes e que ficava a poucos metros de lá. Era um barracão de madeira, com janela, da qual saía um feixe de luz emanado do teto do recinto, proveniente de uma luminária de luz branca. Dirigi-me ao local e entrei pela porta semi-aberta.
Sentado atrás de uma escrivaninha delapidada, estava nosso homem, com um jornal na mão e um charuto na boca. Não havia sequer tirado o paletó. Na mesa, havia uma garrafa térmica e um copo descartável com café pela metade.
— Então conseguiu chegar até aqui... — comentou, tirando o charuto da boca e esboçando um sorriso, com dentes amarelados e cariados à vista.
Para justificar minha curiosidade, expliquei-lhe que desejava entrevistá-lo. Foi, então, que contou-me um pouco de sua vida.
Fazia dois anos que perdera tudo que tinha quando ocorreu uma enchente na periferia da cidade. Sua moradia desabou, levando junto sua mulher e único filho. Na ocasião, estava desempregado e soube da tragédia apenas quando retornou para casa à noite, após longo dia em busca de trabalho. Só lhe restara a roupa do corpo. Com um gesto, deu a entender que era a mesma que estava usando!
Fora acolhido por vizinhos, que sofreram menos com a catástrofe, porém, também se encontravam em situação crítica. Um deles trabalhava neste depósito de reciclagem e o convidou para vir com ele. A caminho, foram recolhendo os utensílios que pudessem ser aproveitados para reciclar.
Por usar terno e gravata, fato inusitado entre os demais trabalhadores, logo foi elevado a gerente do depósito. Desde então, apesar de ter arranjado um novo lugar para residir e estar numa situação econômica um pouco melhor, vinha diariamente ao depósito vestido tal qual no primeiro dia, para nunca mais se esquecer que fora com a ajuda dos amigos que conseguira superar as dificuldades ocasionadas pela tempestade.
No entanto, não conseguiu perder o hábito de separar todos os objetos para reciclagem que achava a caminho do trabalho, pois sabia que fora isso que se tornou seu ganha-pão, e que o fizera se reerguer.
Agora, quando vou caminhar e vejo alguém revirando o lixo da avenida, eu me pergunto:
— Será o Benedito?

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

O CALENDÁRIO E O ANO BISSEXTO

Sendo 2008 um ano bissexto, interessou-me pesquisar sua origem, razão de ser e, ao mesmo tempo, estudar o calendário que adotamos.
Desde os tempos mais remotos existiram calendários, devido à necessidade do Homem de contar o tempo e à observação do dia e da noite, e das estações do ano. Muitos calendários passavam de pais para filhos oralmente, quando ainda não existia a escrita e, mais tarde, havendo-a, baseou-se freqüentemente na ascensão dos monarcas, levando a enormes confusões na cronologia da história da humanidade.
Havia grandes dificuldades para sua adequação, justamente porque a duração do dia e de um mês não é um múltiplo exato, resultando num ano inexato.
Muitos séculos antes de Cristo, os egípcios já utilizavam um ano de 360 dias que se iniciava com a enchente anual do Nilo. A cada 4 anos, começaram a adicionar um dia, depois de deduzirem que um ano correspondia a 365,25 dias.
Em 46 a.C., o Imperador Júlio César (Gaius Julius Caesar, 102-44 a.C.) reformou o calendário existente em Roma, no qual se introduzia um 13º mês sempre que se achava necessário e, assim, surgiu o Calendário Juliano, com 12 meses em que, a cada 4 anos, havia um ano de 366 dias. Esse calendário foi adotado na Europa por cerca de 1500 anos.
Foi observado que, apesar da correção a cada 4 anos, o Calendário Juliano não era preciso, pois o ano apresentava 11 minutos e 14 segundos a mais em relação ao Ano Solar. Com o passar do tempo, essa diferença afetava as datas do início das estações e dos festivais religiosos.
Em 1582, o Papa Gregório XIII (1502-1585), após vários estudos juntamente com astrônomos e matemáticos, modificou o Calendário Juliano e elaborou o Calendário Gregoriano, que é utilizado até os dias de hoje. Através de muitos erros e acertos, chegou-se à seguinte regra, que é seguida desde então: “Será bissexto todo ano cujo número seja divisível por 4 e não divisível por 100, sendo também bissexto os anos divisíveis por 400”.
Como o Ano Juliano é mais longo que o Ano Solar, no final de um século há um excedente de cerca de ¾ de um dia. Em 4 séculos, essa diferença corresponde a aproximadamente 3 dias. Como a cada 4 anos há um ano bissexto, em cada 400 anos teríamos 100 bissextos. Considerando-se que os dias excedentes seriam introduzidos nos futuros anos bissextos, a solução ao problema foi de eliminar 3 anos bissextos para se eliminar os 3 dias excedentes, ou seja, a partir de 1582 somente poderiam existir 97 anos bissextos a cada 400 anos. Escolheu-se então retirar os anos bissextos divisíveis por 100 (que seriam 4), mas para poder retirar apenas 3, manteve-se o único ano bissexto divisível por 400. Por esse motivo, um em cada 4 anos de fim de século é considerado ano bissexto, mas tão somente se for divisível por 400. Os anos de 1700, 1800, 1900 não foram anos bissextos, assim como 2100 não o será, porém 1600 e 2000 foram bissextos, por serem divisíveis por 400. A engenhosidade para resolver este problema talvez seja um dos cálculos mais brilhantes do século XVI.
Quando Júlio César introduziu seu calendário em 46 a.C., ele fez com que o ano se iniciasse em 1º de janeiro, mas nem sempre foi assim. A Igreja não gostava das festividades quase pagãs que ocorriam no Ano Novo e, em 567 d.C., o Concílio de Tours declarou que iniciar o ano em 1º de janeiro era um erro que precisava ser corrigido. Durante a Idade Média várias datas foram usadas, gerando muitos problemas de interpretação.
Apesar de representar um avanço, e muitos países adotarem o Calendário Gregoriano, principalmente os países protestantes demoraram para aceitá-lo. Na Alemanha só foi adotado no século XVII, e países europeus como Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia, no séc. XVIII. Curiosamente, na Inglaterra (e não na Escócia), o ano histórico começava em 1º de janeiro e o ano litúrgico se iniciava no primeiro dia do Advento (quatro semanas antes do Natal). No entanto, o ano civil variou muito: do século VII ao século XII, começava em 25 de dezembro; do século XII até 1751, em 25 de março. Somente após 1752, quando adotou-se o Calendário Gregoriano, oficializou-se a data de 1º de janeiro. Vários países só adotaram esse calendário no século XX, como Bulgária, Grécia, Iugoslávia, Romênia, Turquia e União Soviética. Na China foi aceito para vigorar simultaneamente com o calendário tradicional chinês. No Brasil, colônia de Portugal, então sob domínio da Espanha, passou a vigorar em 1582, data em que fora instituído pelo Papa Gregório XIII.
É interessante saber a forma inglesa de se chamar o ano bissexto: leap year. Ao pé da letra, significa “o ano que pula”. Cogita-se que deriva do fato dos festivais, após o dia intercalado (29 de fevereiro), “pulam” um dia à frente.
O antigo calendário romano apresentava três dias fixos no mês, baseados no ciclo lunar e um mês dividia-se em três partes, separadas por calendas (lua nova), nonas (quarto crescente) e idos (lua cheia). Os demais dias eram contados de trás para a frente em relação ao dia fixo subseqüente. O dia 2 de janeiro, por exemplo, era antediem IV nonas januarii, “quatro dias antes da nona de janeiro”, o dia 3 de fevereiro, antediem III nonas februarii, ou seja “três dias antes da nona de fevereiro” e assim por diante. Obviamente, calendas resultou no termo “calendário”.
Júlio César não inventou um novo dia (como existe hoje o dia 29 de fevereiro) para compensar o dia a mais a cada 4 anos, mas escolheu, aleatoriamente, o dia 24 de fevereiro para ser repetido novamente. Esse dia, em latim, chamava-se bis sextum antediem calendas martii, “o segundo sexto dia antes da calenda de março”. Daí a origem do termo bissexto.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

BATRÁQUIOS

Não me falem de batráquios, sejam eles sapos, rãs ou pererecas.
Conhecem as pererecas?... Aquelas coisas geladas e gosmentas que fazem "cró!".
Ugh! Tenho verdadeiro asco delas. Vou-lhes contar porquê.
Tempos atrás, fomos passar uns dias na praia. Chegamos debaixo de chuva. Não nos agradava a idéia de ficar em casa, mas... que remédio!
Logo, ruídos estranhos nos arredores da casa nos chamaram a atenção: parecia um caldeirão de sopa fervilhando, schlop, schlop, schlop, schlop.
Prestando bem atenção, deu para discernir que se tratava de uma multidão de batráquios no brejo ao lado, regozijando-se daquele clima próprio para eles.
Não tardou e ouvimos um daqueles seres coaxando no interior da casa. Foi imediatamente respondido por outro, também lá dentro. Sabíamos que ia ser uma longa noite, caçando aqueles bichos.
Fazia algum tempo que a casa não recebia hóspedes e os animais a consideravam sua. O telhado de telhas-vãs facilitava a entrada daqueles mal-desejados.
De luzes acesas, procurei pelos danados que haviam silenciado com a claridade da luz artificial.
Pouco depois, escutei um "plop!" e depois mais um "plop!". Deduzi, acertadamente, que era um batráquio andando pelo chão. Procurei por ele e acabei achando-o.
Lembrei-me de uma boa maneira de caçar passarinho, atirando-se um chapéu sobre ele e assim evitando que voasse. Decidi fazer o mesmo neste caso e — heureca! — foi pleno sucesso.
A perereca, de cor verde-clara e patinhas globosas, estava debaixo do chapéu que se movia lentamente com as tentativas da perereca de sair debaixo dele. Arrastei o chapéu até a porta de entrada e com um movimento brusco, procurei me desvencilhar do indesejável inquilino, mas ele deu um salto e aquela coisa nojenta foi aterrissar na minha testa. Quase desfaleci de susto.
Enfim, esta e outras pererecas foram despejadas por nós naquela fatídica noite e do mesmo modo.
Não foi diferente nas noites seguintes.
Apenas numa ocasião, senti pena daqueles bichinhos. Um arrepio desceu por minha espinha ao forçar uma porta que parecia emperrada e ouvi um grito de dor. Quando fui olhar, lá se encontrava uma perereca estatelada entre a porta e o batente, junto às dobradiças. Havia espremido a coitada!
Por isso, toda vez que vejo um batráquio, vem-me à mente aqueles dias inesquecíveis na praia...

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

ESPELHO

Sou o espelho afixado
Na parede do teu quarto
Que te observas
Enquanto repousas em sono profundo.

Que sonhos tens,
Que pensamentos permeiam tua cabeça
Locupletam os sentidos e
Fazem-te despertar com um riso?

Reflito a tua imagem,
Quando me olhas pela manhã,
Depois do teu banho formoso.
Quero te amar!

Ah! Formosura
Ah! Musa inspiradora
Tu me deixas louco de paixão,
A toda hora!

Ah, se tivesse duas mãos
Para poder envolver-te
E uma boca para dizer-te:
Amo-te...

Sim, amo-te, adoro-te,
Quero ficar aqui para sempre,
Só para viver

Eternamente a teu lado

A refletir tua beleza,
Admirar teus traços lindos
Tua tez virginal
Teu bom sorriso matinal...

sábado, 8 de dezembro de 2007

FUMAR, OU NÃO FUMAR, EIS A QUESTÃO...

Fazia tempo que nós, estudantes de medicina, jogávamos vôlei juntos. Nós nos reuníamos, todo fim de semana, na casa de Antonio, um senhor cerca de 25 anos mais velho. Aos domingos, chegávamos mais cedo, por insistência dele, e começávamos a jogar, depois íamos para a piscina, jogávamos mais um pouco e, em seguida, saboreávamos um delicioso churrasco. Sua esposa nos acolhia com ternura, por sermos seus amigos. Isso durou quase dois anos. Antonio tinha apenas um grande defeito: fumava sem parar. Jogando vôlei, às vezes, tinha acessos de tosse que nos obrigava a interromper a partida. Dentre nós, metade fumava, também. Certo dia, fomos avisados que ele fora internado no hospital e submetido a uma cirurgia torácica. Um colega nosso, e vizinho de Antonio, participou da operação. Este, que também fumava, disse-nos que nunca tinha visto um pulmão tão preto, impregnado pelo alcatrão e pela nicotina. Jurou que jamais voltaria a colocar um cigarro na boca. Infelizmente, Antonio não resistiu à intervenção e faleceu.
Como crianças, éramos instigados ao cigarro pelos adultos, fosse em casa, na escola ou nos cinemas. Minha primeira experiência foi aos 11 anos, escondido atrás de uma sebe, no pátio da escola, fora da visão do Inspetor de Alunos. Se gostei ou não, nem me lembro, no entanto, insistia em fumar, para mostrar aos coleguinhas como era adulto; eles, da mesma forma. Oh, mentalidade infantil estúpida! Ao ser descoberto, o castigo foi tão pesado, que só voltei a fumar no tempo da faculdade. Comecei com cachimbo, e daí para o cigarro, foi um passo.
Todavia, mesmo naquele tempo, não suportava o cheiro de toco de cigarro apagado e, muito menos, o bafo de fumantes. Beijar uma moça que fumasse, então, virava meu estômago. Era como se estivesse beijando um cinzeiro!
Certa feita, já formado, fui consultar uns periódicos na biblioteca da faculdade, fumando, como sempre. Chegava a fumar dois maços de cigarros, em um plantão de 24 horas! Saindo da biblioteca, fui tomar o elevador para ir embora. Lá estava eu, fumando, quando chegou um dos professores mais importantes da faculdade, que não me conhecia. Hoje, tenho a honra de tê-lo como um bom amigo.
— Doutor, o senhor não sabe que não se pode fumar aqui? — perguntou, com aspereza.
Este doutor, recém-formado, dono de seu próprio nariz, sem nada a perder, respondeu na mesma hora:
— Desculpe, Professor, mas se há cinzeiro com areia aqui, junto à porta do elevador, imagino que se possa fumar.
Ele apenas olhou para onde eu apontara, virou-se, e foi embora. Até hoje, não há mais cinzeiros naquele local, em nenhum dos andares e há, na parede, uma plaqueta de “Proibido Fumar”.
Havia decidido parar com esse vício, por não achar justo que os membros de minha família continuassem como fumantes involuntários. Durante um ano, fui-me preparando para largar, definitivamente, o cigarro. Diminuíra o número para uns cinco cigarros por dia. Coincidiu que tive uma forte faringite, por processo gripal, e fui obrigado a diminuir para um cigarro por dia. Foi aí que acordei ao fato de que era a oportunidade de ouro para cessar com o fumo. Foi o que fiz.
Nunca mais fumei. Não que deixasse de ter vontade. Lembro-me bem da ocasião em que nascera o filho de um colega. Deu-me um charuto. Cheirava o charuto, mas não tive coragem de acendê-lo. Dei a outro colega, que estava presente na reunião onde ganhara o mesmo.
Lá se vão 15 anos sem o maldito. Hoje, dificilmente sinto a necessidade de um cigarro. Mesmo assim, não posso controlar meus sonhos. Por vezes, acordo no meio da noite, com o sabor do cigarro na boca...

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

O DRAMA DE ANTÓNIO

A padaria tinha aberto suas portas às seis da manhã daquele domingo para atender o público, muito embora os empregados tivessem chegado bem antes para preparar o pão. Ao meio-dia encerrou-se o expediente e, com as portas cerradas, o jovem casal de portugueses, proprietários do estabelecimento, foram ao andar superior onde residiam, pela escadaria interna que lhes servia para esse fim.
Receberam a visita de outro casal para o almoço, que tinha uma filha de quatro anos, da mesma idade de seu filho António.
Dona Maria de Lourdes havia preparado uma deliciosa bacalhoada, regada a vinho branco português. Depois da refeição, foram se sentar nas poltronas da varanda, para saborearem o café e prosear.
O silêncio da rua, a paz e o sossego foram subitamente e ofensivamente interrompidos por um grito de desespero vindo das profundezas da edificação que gelaram os corações de Maria de Lourdes e seu marido Ramalho. Tinham a certeza que partira dos lábios de seu filho.
— Meu Deus, que foi isso?
Os gritos continuavam, agora entrecortados pelo choro de duas crianças e vinham lá da padaria.
Ramalho voou escada abaixo e acendeu a luz, pois a parte de trás da padaria estava na escuridão e ele ouvira o funcionamento de máquinas, que naquela hora deveriam estar todas desligadas.
Nunca mais na vida se apagaria de sua memória a cena que viu. Anos mais tarde, ao reencontrá-lo, contou-me que ainda sonhava com aqueles momentos terríveis e acordava de madrugada, banhado em suor.
António se encontrava de pé em cima da bancada de mármore, gritando, com os pés descalços presos entre os cilindros giratórios da máquina que ficava na bancada e servia para se passar diversas vezes a massa de pão durante o seu preparo.
O motor zunia, mas os cilindros se encontravam travados, devido à espessura dos pés presos neles. Desligou imediatamente o motor e rapidamente soltou o cilindro superior, liberando o garoto, que desfaleceu em seus braços.
A menina chorava num canto e explicou aos pais aflitos que o António brincava próximo aos rolos, quando ela apertou um bonito botão verde. No instante seguinte, o seu amiguinho se pôs a gritar.
Foi esta a história que me foi relatada posteriormente, porque entraram pai, mãe e criança chorando aos berros no Pronto Socorro onde me encontrava de plantão.
O esmagamento dos pés de António era muito sério. As radiografias mostraram fraturas de metatarsais e falanges, mas de pouca importância e gravidade. Porém, as lesões de partes moles eram de abalar o mais experiente ortopedista.
No entanto, o que mais impressionava era a atitude estóica do menino, que ao me ver, pareceu se tranqüilizar e, virando-se para a mãe, falou:
— Mãe, não estou chorando mais, vê?... Então, pare de chorar também!
— Oh, meu filho! — disse ela, apertando-o contra si.
Solicitei o concurso do cirurgião plástico e, juntos, operamos o menor. Lavamos criteriosamente os ferimentos e fizemos enxertos imediatos de pele. Após os curativos, colocamos duas talas gessadas.
O paciente evoluiu com febre e infecção nos primeiros dias e fazíamos curativos diários, até que a aparência dos pés ficou mais saudável. Os dedos mínimos dos pés tiveram de ser amputados, porque ficaram sem circulação sangüínea, porém, foi só.
Quando chegava a hora de fazer os curativos, António parecia oferecer os pés para isso, tal o seu firme propósito de sarar. Observando-o, via seu semblante preocupado, de olhos arregalados e pupilas dilatadas e os lábios esbranquiçados, do esforço que fazia para não emitir um gemido sequer.
Durante este período, ele se manteve calmo, sem nunca chorar ou se lamuriar. Não parecia uma criança de apenas quatro anos. Toda vez que seus pais o visitavam, esboçava um sorriso e abraçava os dois. Injetava ânimo nos seus rostos tensos.
Na enfermaria de crianças, fez amizade entre pacientes e enfermeiras. Era adorado por todos.
Durante quatro semanas ficou restrito ao leito, não podendo andar, mas sua cama estava sempre cheia de brinquedos e rodeada pelos seus coleguinhas de infortúnio.
Ao se aproximar de um mês do acidente, notificamos os pais que íamos tentar fazê-lo caminhar, inicialmente com as talas de gesso e depois sem elas. Nada dissemos ao garoto.
Logo cedo, no dia marcado, os pais se achavam na sala de recepção. Convidei-os para me acompanhar e lá fomos nós até a enfermaria.
Apesar de saber da coragem que António tinha demonstrado desde a sua internação, nunca imaginei que, ao sugerir que andasse, prontamente aceitaria o desafio, sem relutar.
Deu os primeiros passos segurando as minhas mãos e depois as soltou e, desajeitadamente por causa do gesso, com a fácies lívida, foi cambaleando em direção à sua mãe.
— Mamãe!
Todos nós chorávamos de felicidade e batíamos palmas pela sua força de vontade em se recuperar. Seu rosto se iluminou.
Alguns dias depois recebeu alta do hospital e continuou em tratamento ambulatorial, recebendo alta definitiva dois meses depois.
Cerca de três anos mais tarde, tive a oportunidade de revê-lo, quando esteve em consulta por outro problema ortopédico. Não tinha dor nos pés, jogava futebol como qualquer outro menino de sua idade e não se achava traumatizado pelo fato de ter perdido alguns dedos. Enfim, era uma criança normal.
Não posso conter a minha admiração pelo António, que diante da adversidade, com a tenra idade de quatro anos, soube enfrentá-la melhor do que muitos adultos.
P.S. - A história é real; os nomes fictícios. Por ocasião da consulta por outra patologia, apresentei a criança numa reunião médica de ortopedistas interessados em doenças dos pés. Na ocasião, o comentário foi de como é maravilhosa a Mãe Natureza, na recuperação quase que milagrosa de seus pequenos filhos.

domingo, 2 de dezembro de 2007

UM PENSAMENTO

O não-uso da razão pode levar ao pagamento de um tributo muito alto e talvez não valha a pena. Contudo, viver a vida apenas pela razão, pode se tornar tão monótona que talvez também não valha a pena. O meio-termo é provavelmente como se deve viver, entre a razão e a emoção.

sábado, 1 de dezembro de 2007

HUNKY-DORY

Estava sentado na espreguiçadeira, a sor- ver uma deliciosa cerveja gelada, naquele fim de tarde de janeiro. Como de costume, o ventilador de teto da varanda zunia à toda, mandando-nos uma suave brisa, que nos iludia do calor que fazia lá fora.
A varanda é toda telada, pois nesta localidade há muitas moscas e outros insetos voadores que perturbam a paz do ambiente. Não restou outra alternativa que cercá-la para que pudesse ser aproveitada. Por anos serviu apenas de acesso à casa propriamente dita, até que fomos iluminados pela idéia de colocar a tela. Com isso, ganhamos mais um espaço, que agora é o centro de reuniões com os amigos que nos procuram.
Nesta tarde, o vizinho que tem o sítio de frente, pediu-me para lhe contar por que nossa casa se chama "Hunky-Dory". Olhei acima da entrada principal para a placa de ferro pintado e, por longos momentos, fiquei meditando. Essa placa me acompanhou por toda a vida, embora sua presença na família fosse ainda mais remota.
— Meu pai — comecei, e tive de interromper, pois a emoção tomou conta de mim. Após me conter, continuei: — Meu pai, ao casar-se com minha mãe, foi passar a lua-de-mel numa cidade litorânea.
Fiquei observando a reação do meu amigo. Ele sabia, como eu, que tinha de se preparar por uma história meticulosa, pois quando eu estava inspirado, ninguém me segurava e podia ficar horas a fio conversando.
— Foram para uma hospedaria cuja proprietária era uma senhora alemã. Naquele tempo, na década de 30, o relacionamento entre alemães e ingleses (meus pais) era dos mais corteses. Durante sua estadia, ficaram muito amigos. Certo dia, a senhora alemã confidenciou ao meu pai que fazia pouco tempo que adquirira aquela propriedade e quase não a comprara da vergonha que sentira ao deparar-se com uma placa à entrada da casa, cujas palavras não entendia, mas tinha certeza se tratarem de algum tipo de chacota ou então palavras de baixo calão. Como o preço fora altamente tentador e dispunha da quantia certa, herdada do falecido marido, encontrou uma solução temporária, pedindo que se cobrisse a placa com um tapume de madeira e, assim, ficou com a casa.
A essa altura, meus filhos já haviam se sentado ao meu redor, absorvendo a história com avidez. Minha esposa e a do meu amigo nos faziam companhia e pararam de conversar para também ouvir. É claro que minha família conhecia os fatos, mas gostavam que fossem recontados.
— Com grande curiosidade, meu pai pediu permissão para retirar o tapume e ver a placa.
Com uma pausa dramática, apontei para a placa de "Hunky-Dory" e disse: — Era essa placa que agora está aqui.
Todos, sem exceção, olharam para cima da porta principal, à famosa placa: ela parecia reluzir, de tanta atenção que recebia.
— Pois é — disse a seguir —, meu pai entendeu logo o significado e ofereceu retirá-la. A alemã aceitou de bom grado e quando voltaram à sua cidade, meu pai levava a placa embaixo do braço.
Ela ficou em sua posse por mais de trinta anos e jurou que afixaria na primeira casa que construísse. Entretanto, nem sempre os sonhos se tornam realidade e ele nunca pôde ter sua própria residência. Quando viu que não seria possível realizá-lo, passou o sonho para mim e a placa, toda enferrujada, ficou comigo. Pouco mais de dez anos depois, pude edificar a minha casa de campo neste maravilhoso sítio.
Contei estes detalhes à minha audiência.
— Foi com muita infelicidade que meu pai não pôde ver de perto a primeira casa construída por um de seus filhos, que se chamaria "Hunky-Dory". Só viu fotografias dela durante a obra, tendo falecido, aos 85 anos de idade, meses antes de ficarmos aqui pela primeira vez.
Reinava um silêncio respeitador. Todos sabiam o quanto significava para mim a ausência do meu pai, mesmo tantos anos depois e a frustração dele não ter conhecido esta casa.
Meu amigo me perguntou: — Qual é o significado de "Hunky-Dory"? — enrolando um pouco a língua na pronúncia daquelas palavras estrangeiras.
Concluí então a minha história. As palavras gravadas naquela placa de ferro, que foi restaurada antes de ser afixada acima da porta de entrada, traduzidas ao português, queriam dizer que "tudo estava como deveria ser".
Ou seja, em suma, o desejo de meu pai fora cumprido e agora tudo estava em seu devido lugar. Minha cerveja, esquecida ao lado da espreguiçadeira, perdera o gelo. Levantei-me para pegar outra na geladeira. Afastei-me de todos. Uma lágrima escorreu-me rosto abaixo. De costas à platéia, ninguém viu a renovada emoção que sempre sinto, toda vez que me lembro dessa história, tão interligada com a minha própria existência.